Adriana Ramos coordena o Programa de Política e Direito do Instituto Socioambiental é diretora da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong). É carioca, mas sua atuação na área de políticas socioambientais, que já vai para mais de 20 anos, a trouxe para Brasília. Jornalista de formação, acumula as funções de mãe, esposa, filha, tia, dona de casa, cidadã do Brasil e do mundo. E mesmo assim encontrou tempo para conversar comigo sobre o Dia do Índio.
Rede – Dia 19 de abril é o Dia do Índio. Algo a comemorar?
Adriana Ramos – A única coisa a comemorar é que os índios brasileiros têm demonstrado que formam o movimento social mais interessante e inovador que há no país. Diante das adversidades, consegue unir todas as diferenças – que não são pequenas: 252 etnias no Brasil, com diferentes formas de fazer política.
Não há dúvida que o movimento indígena está à altura do grande desafio que se apresenta para ele no momento: a desconstituição dos seus direitos. Esse desafio faz o Brasil estar numa situação que, ao invés de comemorar os direitos vigentes e sua implementação, se vê obrigado a lutar para garanti-los.
Rede – Há um protagonismo maior dos índios atualmente?
Adriana Ramos – Sim. Quando o inimigo é maior a união é inevitável. Hoje, vivemos uma época onde muitas máscaras começam a cair. Estão ficando claras as vinculações dos governos com os setores que agem mais violentamente contra os povos indígenas. Está claro o preconceito escancarado unido à violência bruta. Tudo isso mostra aos índios quem são seus inimigos.
Eles se mostram nos discursos da bancada ruralista no Congresso. Nos atentados contra os indígenas, perpetrados pelos proprietários de terra no Mato Grosso do Sul. E nas próprias ações dos governos contrárias aos interesses dos povos indígenas.
Rede – Quando falo do protagonismo, incluo uma crescente presença de membros de determinadas etnias nas redes sociais, produzindo arte, se mostrando autodeterminados, denunciando injustiças.
Adriana Ramos – É verdade. Hoje cada um pode dar sua opinião. É o que Marina Silva chama de “militância autoral”. Quando não havia redes sociais, a gente só podia ouvir a opinião majoritária reproduzida pelos meios tradicionais de comunicação. As disputas de discursos aconteciam dentro das instituições, dentro dos meios de comunicação. Só chegavam à população quando já estavam “resolvidas”.
Hoje isso mudou. As discussões acontecem diariamente tanto nas redes sociais, quanto nos encontros presenciais.
Rede – Mas o preconceito contra esses povos arrefeceu?
Adriana Ramos – Ainda persiste um grande preconceito contra os índios. Só aprendemos o que eles foram no passado. As escolas não mostram os índios no nosso presente. Isso forma uma grande confusão na cabeça dos brasileiros. Confusão que ajudou a esconder o preconceito cultivado contra esses povos.
Preconceito que só foi reconhecido e demonstrado recentemente. A partir do momento em que apareceram esses discursos mais inflamados, de gente como o deputado Luís Carlos Heinze que veio com aquela de que “índios, gays, quilombolas são tudo que não presta”.
Por outro lado, permanece uma visão bastante romantizada do papel dos índios na formação cultural brasileira. Então, se de um lado tem o preconceito, do outro há simpatia. Duas visões em disputa.
Foi por isso que o ISA desenvolveu a campanha “Menos Preconceito, Mais Índio”. A ideia é mostrar que os índios podem, sim, usar celular, vestir roupas, ver TV, sem por isso deixarem de ser índios. Não é isso que faz a diferença entre índios e não-índios.
Rede – O que é ser índio na contemporaneidade?
Adriana Ramos – Ser índio é se reconhecer como índio e ser reconhecido como índio em uma comunidade. Já os povos indígenas são aqueles que guardam relações cosmológicas, de herança cultural com povos pré-colombianos.
Nesse momento, ser índio é um grande desafio, que a maior parte dos povos indígenas está enfrentando: lidar com as instituições dos estados nacionais na busca de condições dignas de vida, de educação e de manutenção de seus modos tradicionais.
Uma coisa que revela muito o preconceito contra eles (e que mostra também nossa falta de autocritica) é essa ideia de achar que os povos indígenas vivem de uma forma atrasada, que deveriam viver como a gente vive.
Isso tem de mudar.
Para citar um exemplo próximo, estamos em Brasília, na capital do país, com racionamento de água, em período chuvoso, porque não conseguimos preservar nossos recursos hídricos nem manter as nascentes e matas que contribuem para a chuva.
Mesmo assim, a gente se acha mais inteligente e mais capaz que essa população. População que, durante milhares de anos, foi capaz de usar e preservar os recursos naturais de seus territórios, vivendo de maneira bastante original.
Temos de olhar para os índios com a possibilidade de interação entre nossa sociedade e as deles. Hoje as universidades estão se abrindo para centenas de estudantes indígenas. São advogados, médicos, professores, linguistas, alunos indígenas de mestrado, doutorado. Essa troca é positiva e salutar.
Rede – Em um momento de crise política como a que vivemos, o conhecimento milenar desses índios não teria algum ensinamento que nos servisse?
Adriana Ramos – Sem dúvida. Isso está bem descrito nos estudos antropológicos. Seria importante conhecermos como diferentes povos indígenas vizinhos se relacionam. Como diferentes sistemas políticos, que variam de etnia para etnia, conseguem, por exemplo, interagir numa governança territorial.
O melhor exemplo é o Parque Indígena do Xingu. São 14 etnias, algumas bastante distintas e contraditórias entre si. Com inúmeras diferenças de relações de poder. Mas mesmo assim conseguem se reunir, elaborar um plano de gestão para o território, incluindo as próprias visões e regras, e partem para uma gestão integrada.
Eles têm muito a ensinar porque é um repertório de visões de mundo muito mais rico do que as hegemonias que a gente se acostumou a adotar, mas que demonstram hoje uma limitação imensa para lidar com diferentes aspectos da nossa vida.
Rede – Qual o futuro da Funai?
Adriana Ramos – Precisamos de um órgão como a Funai. Um órgão que olhe para os povos indígenas de uma forma diferenciada. Mas já há algum tempo que a Funai teria de ter sido reforçada para cumprir papéis mais exclusivos e nobres, como as questões das terras indígenas.
Não existem recursos para a gestão dessas terras, nem para apoiar os povos indígenas nas relações com outras sociedades, dentro de uma lógica de fortalecimento de protagonismo. Uma vez que não há mais espaço para a tutela. Nem no nosso ordenamento jurídico, nem na nossa consciência.
No entanto outros órgãos de governo têm de ter suas responsabilidades em relação a eles. Como já acontece no caso da saúde e da educação.
Ao contrário do que teorias conspiratórias dizem (que haveria interesse de povos indígenas em transformar seus territórios em nações independentes do Brasil), os índios brasileiros vêm na verdade pedir apoio ao estado. Eles querem ser parte do país.
O enredo da escola de samba Imperatriz Leopoldinense deste ano foi muito feliz em reconhecer isso. Todas as grandes campanhas por territórios demarcados, como nos casos da Rapoza Serra do Sol, das terras yanomami, waiãpi foram campanhas para uma maior participação dos índios na sociedade brasileira. Eles sempre apareciam com a bandeira brasileira como símbolo.
Rede – A Executiva Nacional da Rede enviou uma mensagem aos filiados para que se mobilizassem no Abril Indígena. O que você sugere?
Adriana Ramos – Em Brasília, teremos entre os dias 24 e 28 de abril o Acampamento Terra Livre, que é a maior manifestação da mobilização nacional indígena.
Tem duas formas de participar. Uma campanha de arrecadação de recursos no site Vakinha. E uma outra, convidando as pessoas para ajudar no quer for preciso durante os quatro dias.
Essa mobilização é acompanhada por eventos semelhantes nos estados. As pessoas podem se informar para poder ajudar.
É muito importante que elas estejam presente nas manifestações, demostrando sua solidariedade e que compartilhem nas redes sociais as demandas que os indígenas vão apresentar. É desse tipo de apoio que o movimento indígena precisa para seguir na luta.
Quem quiser se cadastrar para ajudar no Acampamento Terra Livre 2017 em Brasília, clique aqui.
(Foto Quadrada: Agência Estado)
Fonte: Blog Evergreenforests