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O mito das “contas que não fecham”, sem dizer por quê, ou colocando a culpa em uma irresponsabilidade abstrata de governos anteriores, é o instrumento subjetivo que pacifica o povo diante de tamanha extorsão em favor de poucos privilegiados que já detém fortunas inimagináveis

Por Maurício Abdalla*

O Governo anunciou o aumento de impostos sobre combustíveis sob o pretexto de que essa medida tinha como objetivo o “equilíbrio das contas públicas”. O discurso foi repetido insistentemente pela mídia. Inclusive pela Globo, que resolveu fazer oposição ao Governo que ela mesma ajudou a chegar ao poder sem o voto popular. O conteúdo opinativo e jornalístico da emissora, apesar de rompido com o atual mandatário do Executivo, continua perfeitamente afinado com os interesses dos que promoveram o impeachment.

Ninguém gosta de ter as contas desequilibradas. Por isso, muitos aceitam o que é mostrado como um “remédio amargo” para curar a doença que os fizeram acreditar acometidos. Reclamam, mas não se revoltam.

Poucos, porém, se perguntam que contas são essas e por que estão desequilibradas. Não porque não queiram saber. Mas porque o braço educativo e formador de opiniões dos que realmente governam o mundo (as corporações de mídia) já construiu e disseminou a resposta: o Governo deposto gastou demais e gerou um rombo que precisa ser compensado com austeridade fiscal e aumento de receita. Em outras palavras, criou-se a ideia (quase uma verdade absoluta) de que o governo anterior gastou mais do que arrecadou e levou o país para o buraco. Uns culparam até os programas sociais pelos “gastos excessivos”.

Se o governo Dilma soube ou não administrar as contas do Estado, não é caso para se discutir aqui. Essencial é saber quem realmente está por trás do rombo nas contas públicas, quem o Governo atual deseja sacrificar para tapá-lo e em nome de que tipo de interesses se pretende fazer o equilíbrio fiscal.

Ladislau Dowbor, em seu artigo Quem quebrou o Estado brasileiro (http://outraspalavras.net/brasil/ladislau-quem-quebrou-o-estado-brasileiro/), revela os verdadeiros responsáveis pela crise fiscal brasileira com dados do próprio Banco Central. A tabela abaixo, copiada de seu texto, mostra que de 2010 a 2013, os gastos primários do Governo (que não inclui o serviço da dívida) foram menores do que a arrecadação. Ou seja, se não se contabiliza o dinheiro gasto com juros para pagar bancos e detentores de títulos públicos (os agiotas legais que vivem da usura), os resultados mostram superávit nas contas públicas.

IX Resultado Primário do Governo Central

2010

2011

2012

2013

2014

2015

78.723,3

93.035,5

86.086,0

75.290,7

-20.471,7

-116.655,6

2%

2,1%

1,8%

1,4%

-0,4%

-2%

www.tesouro.fazenda.gov.br/pt_PT/resultado-do-tesouro-nacional

Programas sociais, previdência, gastos com a máquina administrativa ou investimentos não pesaram negativamente no equilíbrio das contas. Se foram bem feitos ou não é outra história. Só não foram a causa do problema.

Em 2014 houve um pequeno déficit e em 2015 ele chega a 2% do PIB. Não se trata de nenhum rombo. Dowbor nos esclarece que para a União Europeia um déficit de até 3% é considerado normal.

Mas isso não significa que as contas públicas estiveram equilibradas. Pois o rombo existe. Só não dissemos ainda sua origem. Importou até aqui apenas desfazer a ideia de que os gastos do Governo com a sua manutenção (a história repetida dos “muitos ministérios”), com programas sociais, previdência e diferentes investimentos constituíram-se uma “farra com dinheiro público” ou uma “gastança irresponsável”. Os números do Banco Central provam que todos foram feitos dentro do que era possível no orçamento e com sobra (até 2013) ou com um déficit tolerável.

Quando, porém, se contabilizam os gastos com os juros da dívida com o setor financeiro (que agigantou-se desde o plano Real e a política econômica financista que o sustentou, mantida por todos os governos até o presente), o verdadeiro rombo aparece.

A outra tabela exposta no artigo de Dowbor, com dados do Banco Central, mostra o quanto foi transferido de nossas riquezas para o setor financeiro apenas com o pagamento de juros e o que isso representa de déficit nas contas públicas.

X Juros nominais

2010

2011

2012

2013

2014

2015

-124.508,7

-180.533,1

-147.267,6

-185.845,7

-251.070,2

-397.240,4

-3,2%

-4,1%

-3,1%

-3,5%

-4,4%

-6,7%

www.tesouro.fazenda.gov.br/pt_PT/resultado-do-tesouro-nacional

O aumento ou diminuição dos montantes pagos com juros estão diretamente relacionados às variações da taxa de juros para cima ou para baixo. Sob pressão do setor financeiro e com representantes dos banqueiros cuidando da economia a partir de 2014 (com a ida de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda), o Governo Dilma permitiu o aumento do rombo ao elevar a taxa de juros e tentou saciar a fome voraz de banqueiros e especuladores no período de crise. O resultado aparece na tabela.

A pressão das finanças sobre os governos, por todos os meios possíveis, que vão desde a cooptação dos eleitos a ameaças à governabilidade (pelo controle dos parlamentos e dos judiciários), é o que caracteriza o exercício real do poder. Não é por acaso que os bancos e agentes financeiros continuam lucrando bilhões mesmo em períodos de retração da economia, queda do PIB e aumento da pobreza da população.

Somente com essa (aí, sim) “farra” dos bancos e agentes financeiros com a riqueza gerada pelos que trabalham e produzem é que o rombo aparece, ou seja, que a “gastança” do governo se revela em forma de déficit. No resultado final das contas, soma-se o resultado primário com o resultado dos juros. O superávit primário é engolido pelos juros e vira déficit nominal

IX – Resultado Nominal do Governo Central

2010

2011

2012

2013

2014

2015

-45.785,5

-87.517,6

-61.181,7

-110.554,9

-271.541,9

-513.896,0

-1,2%

-2%

-1,3%

-2,1%

-4,8%

-8,7%

www.tesouro.fazenda.gov.br/pt_PT/resultado-do-tesouro-nacional

A causa do rombo, portanto, não foi aumento de gastos, mas aumento de juros para aplacar a ganância dos bancos e compradores de títulos públicos. Ou seja, a crise fiscal não é causa, mas consequência da política econômica financista mantida pelos Governos FHC, Lula e Dilma.

Contudo, não se sacia uma fome insaciável. Apenas o aumento das taxas de juros, o corte de alguns gastos e o anúncio de “austeridade” do Governo Dilma não servia a mesa da banca. Com a economia mundial em crise, a expectativa de lucro do setor financeiro, para concretizar-se, depende da mobilização de todos os recursos do país, ou seja, precisa sugar a maior parte da riqueza dos que realmente participam das atividades fins da economia (trabalhadores e empresários). Depende de que toda a arrecadação feita sobre os produtores de riqueza seja transferida para seus cofres, sob a forma de pagamento de juros, e não para os programas sociais ou áreas como previdência social, saúde, educação, reforma agrária, habitação, etc. Depende, inclusive, de que não exista mais programas sociais ou aposentadorias.

Para isso, um outro governo era necessário. Menos escrupuloso e com menos sensibilidade social. Dilma não servia mais.
Com o novo Governo, o dreno que transferiria todos os recursos da produção para a remuneração do capital financeiro deveria ser colocado nos que, de uma forma ou de outra, tocam a economia produtiva, ou seja, empresários e trabalhadores. Para servir à banca, o governo poderia, além de congelar o orçamento, acabar com programas sociais e destruir a previdência, aumentar a arrecadação com o aumento de impostos sobre o setor produtivo.

O problema é que grandes empresários desse setor (organizados em entidades como CNI, FIESP, etc.) também participaram da conspiração que destituiu o Governo eleito. Além de conseguirem o fim da CLT e anistia de dívidas milionárias, também querem que não haja aumento de tributos que possam reduzir sua participação no butim, ou seja, de impostos que possam incidir sobre o lucro, herança, grandes fortunas, etc.

A solução, então, é o aumento de impostos que são repassados aos preços, transferindo os impactos, mais uma vez, para a população, como é o caso do aumento do imposto sobre os combustíveis. Esse tipo de imposto não é pago por produtores e comerciantes, mas pelos consumidores, pois são embutidos nos preços. Inclusive, até antes de impactarem realmente os custos de comerciantes e produtores. Certamente outros virão.

Esse tipo de medida que aumenta o volume de recursos a serem transferidos para o setor financeiro na forma do pagamento de juros também não é o ideal para o setor produtivo, pois faz cair o consumo, dificulta o crédito e estanca a produção. Mas quem manda de verdade na conjuntura atual do capitalismo são as finanças. Então, a batalha é para ver como se perde menos para se continuar ricos. Por isso eles se unem em um complexo financeiro-empresarial, em nome do capital.

O mito das “contas que não fecham”, sem dizer por quê, ou colocando a culpa em uma irresponsabilidade abstrata de governos anteriores, é o instrumento subjetivo que pacifica o povo diante de tamanha extorsão em favor de poucos privilegiados que já detêm fortunas inimagináveis.

Conhecer as raízes das medidas e divulgá-las é tarefa que pode gerar a indignação e resistência necessárias para o enfrentamento da poderosa banca que domina o mundo por meio de seus representantes na política local.

*Maurício Abdalla é professor de filosofia na Universidade Federal do Espírito Santo

Fonte: Le Monde Diplomatique

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