Em São Bernardo do Campo e em todo o Brasil, milhares de pessoas viram na prisão do ex-presidente Lula um ataque à democracia e aos seus próprios sonhos de um Brasil mais justo. O editor do Observatório acompanhou parte desse processo e traz sua visão destes dias históricos
Por Nicolau Soares
Entre a tarde de quinta-feira (5) e a noite de sábado (7), o destino de um homem fez com que milhares de pessoas se dirigissem até São Bernardo do Campo. O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC foi o palco escolhido pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para seus últimos atos antes de acatar o atropelado pedido de prisão emitido por Sérgio Moro, juiz paranaense que optou pelo papel de adversário político do ex-presidente.
Lá, em seu simbólico berço político, Lula recebeu família, amigos, aliados e uma multidão de apoiadores prontos para denunciar e resistir à arbitrária decisão judicial. Trabalhadores, sindicalistas, estudantes, membros dos movimentos negro, feminista, LGBT, sem teto, sem terra, intelectuais, religiosos, militantes do PT e vários partidos políticos. Todos viam na prisão do torneiro mecânico de 72 anos, além de uma injustiça, um ataque ao sonho de sociedade que compartilham.
A trincheira se formou na noite de quinta-feira, dia 5, pouco depois de Moro emitir o pedido de prisão antes mesmo de encerrado o julgamento dos últimos recursos no TRF4. O ex-presidente recebeu a notícia no Instituto Lula, onde já estavam petistas como a também ex-presidenta Dilma Rousseff e a presidenta do partido Gleisi Hoffmann. De lá, decidiu partir para o Sindicato, que foi em seguida cercado por manifestantes, em especial perto de 10 mil membros da ocupação Povo Sem Medo, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que passaram a noite em vigília comandados pelo líder do movimento Guilherme Boulos, pré-candidato presidencial do PSOL.
Já no carro de som, o deputado federal Vicentinho (PT-SP), também ex-presidente dos Metalúrgicos do ABC, contou que estava com Lula no momento em que os advogados trouxeram a notícia. “Eu estava com ele e confesso que chorei. E em vez de eu consolar o Lula, foi ele que me consolou. Porque ele consola a todos nós. Ele representa a esperança, a dignidade, a justiça que procuramos”, disse emocionado. Para ele, Lula era alento.
Na manhã da sexta-feira, dia 6, Lula era o assunto de todas as pessoas. A caminho de São Bernardo, numa lanchonete perto do metrô Sacomã, uma garçonete se aproximou. “Que coisa estão fazendo com ele, né? Mas também, preso ou solto, em outubro eu voto em quem ele falar”.
No sindicato, algumas centenas de pessoas rodeavam um carro de som, onde lideranças se revezavam trazendo palavras sobre resistência e luta. “Para levar o Lula daqui tem que levar todo mundo, um por um. Estamos no caminho da lei. Os ilegais são os que determinaram a prisão”, disse o presidente da CUT, Vagner Freitas. “Vivemos um golpe que é por conta das conquistas sociais do governo Lula e Dilma e por conta da disputa internacional, porque descobrimos o pré-sal e decidimos usar o dinheiro em educação e saúde, porque deixamos de ser uma república de bananas”, continuou. Para ele, Lula era a soberania.
A ex-ministra Eleonora Menicucci colocou a questão em uma perspectiva histórica, frisando que a defesa da liberdade de Lula hoje é fundamental para a defesa da própria democracia. “Estamos aqui para não permitir que o Brasil entre em um golpe como em 1964, que durou 21 anos. Esse Judiciário está fazendo o papel do antigo Superior Tribunal Militar da época em que fui presa e torturada”, relembrou. Lula, para ela, era a memória de um passado que teima em não ficar para trás.
Incerteza
Mas ninguém sabia ainda os verdadeiros planos de Lula, o que trazia apreensão. Lula iria até Curitiba? Como a Polícia receberia uma eventual recusa em se entregar? Haveria mesmo resistência dos movimentos? “Vai depender de quantas pessoas colocarmos aqui”, analisou um dirigente da CUT. “Se tiver 30, 50 mil pessoas ninguém tira ele daqui. Se não encher…”
A expectativa de uma reação forte fora alimentada pela movimentação do MTST na noite anterior. Uma parte dos militantes permaneceu, acampando nas ruas estreitas ao redor do Sindicato, mas o grupo que se reunia em volta do carro de som era bem menor – ainda que diverso e representativo.
Dirigentes sindicais experientes, jovens estudantes, militantes do movimento negro e feminista. Parlamentares e lideranças petistas como Fernando Haddad, Maria do Rosário e Eduardo Suplicy, e de outros partidos, como Ivan Valente e Glauber Braga, do PSOL, Orlando Silva e Leci Brandão, do PCdoB. O destaque, no entanto, vai para os pré-candidatos à presidência Manuela Dávila (PCdoB) e Boulos, que têm recebido apoio aberto de Lula em suas andanças pelo país.
Resistência
Com o andar do dia, conforme enchiam as ruas, começaram a circular nos bastidores notícias sobre as deliberações do ex-presidente, que desde a noite de quinta estava instalado em duas salas no segundo andar do prédio, onde recebia família, amigos, colegas antigos do Sindicato, e lideranças políticas e dos movimentos sociais, além de seu corpo de advogados. Os últimos aconselhavam seu cliente a aceitar o prazo proposto por Moro, por risco de ver decretada uma prisão preventiva, que eliminaria a chance de novos pedidos de habeas corpus. Lula tendia a aceitar, mas foi pressionado pelos movimentos sociais e sindical. Para eles, ainda que o ex-presidente fosse obviamente o principal afetado, a situação havia ultrapassado o nível da decisão individual e se tornara um momento chave na luta contra o golpe. Era fundamental que Lula resistisse até as últimas consequências.
“O golpe tenta tirar de nós o direito de ter voz, por isso a luta contra a prisão do Lula é uma luta nossa. Vamos resistir até as últimas consequências. Lula: resista! Mostre para o povo que o caminho é a luta!”, ecoou no carro de som Isa Pena, jovem militante do PSOL de São Paulo. Para ela, Lula devia antes de tudo ser estandarte.
“A prisão do Lula é um ataque contra a periferia, não querem que o menino da periferia chegue na universidade. Mas digo pra eles: se vocês acham que o muro aqui é baixo, pula e cai pra dentro, que a gente vai te receber com sangue no olho que a gente está”, disse no carro de som um rapaz do movimento hip-hop. “Morre negro, gay, mulher todo dia na periferia e o Judiciário não está nem aí pra gente”. Lula, naquela sexta, era da periferia.
Se as falas mantinham o tom otimista, nas conversas ao nível do chão as dúvidas se acumulavam. Um pronunciamento e coletiva de Lula foram anunciados para as 14h. Foi adiado para as 15h, depois 16h, e nada do líder aparecer. Nesse horário, a presidenta do PT, Gleisi Hoffmann (PR) fez uma declaração à imprensa junto com os advogados de Lula. O ex-presidente não pretendia resistir à prisão, mas também não iria voluntariamente até Curitiba. Seu paradeiro era conhecido, então não havia risco de ser considerado foragido, como jornais haviam levantado mais cedo. Uma missa em homenagem ao aniversário de sua esposa Marisa Letícia seria celebrada na manhã do sábado, em frente ao Sindicato.
Essa foi a primeira definição do dia: Lula não se entregaria, pelo menos não até o término da celebração. O ex-presidente não falou naquele dia, limitando-se a aparecer numa das janelas do Sindicato e acenar para os militantes, que o saudaram com gritos de “não se entrega”.
A notícia diminuiu a tensão entre os militantes e aumentou a esperança de que fosse encontrada uma saída que mantivesse Lula fora da prisão. Mas a decisão estava tomada, ainda que as falas no carro de som continuassem a pregar resistência. Ele se entregaria à Polícia Federal, que o conduziria até Curitiba. Restava, então, aguardar o momento da despedida. “Ele vai ficar numa sala muito pequena, sem poder ver ninguém, só os advogados uma vez por semana. Dá uma tristeza”, disse uma dirigente da CUT. “E a gente fica aqui nesse clima de velório, de sala de espera de hospital”. Para ela, Lula era um velhinho.
A multidão começou a se dispersar, mas um número considerável de militantes permaneceu no Sindicato e nas ruas ao redor por toda a noite. As salas internas, auditório, hall de entrada, todos estavam tomados por pessoas dormindo em cima de mochilas, embrulhados em cobertores improvisados. Na rua, muitos continuaram acordados, discutindo, analisando, elaborando. Esperando e esperançando, como diria Paulo Freire, o desfecho desse capítulo da história de Lula, do PT e do Brasil. “É como entregar um irmão”, afirmou um militante.
O discurso e a imagem
O sábado amanheceu com a expectativa da missa e, principalmente, da fala de Lula. Outra onda de militantes veio se juntar aos resistentes do Sindicato e uma nova multidão se formou. A missa foi celebrada por dom Angélico Sândalo Bernardino, bispo da Diocese de Blumenau, religioso ligado à esquerda da Igreja, próximo de Paulo Evaristo Arns e responsável pela Pastoral Operária.
Tudo fazia parte da mensagem que Lula escolheu deixar antes de se entregar. Em um discurso que já nasceu histórico, fez referências veladas à carta-testamento de Getúlio Vargas antes do suicídio. “Não adianta tentar acabar com as minhas ideias, elas já estão pairando no ar e não tem como prendê-las. Não adianta tentar parar os meus sonhos porque, quando eu parar de sonhar, eu sonharei pela cabeça de vocês”.
“Eu sou Lula”, passou a entoar a multidão que o acompanhava. Ela apoiou e aplaudiu o discurso até o momento chave: aquele em que o ex-presidente anunciou publicamente pela primeira vez que cumpriria a sentença. A reação foi imediata: “não se entrega!”
Lula saiu do caminhão de som e foi literalmente carregado pelo povo até dentro do prédio, emulando cenas de antigas assembleias naquele mesmo sindicato e criando uma imagem completamente diversa da esperada por seus inimigos na direita, na mídia e no Judiciário quando decidiram prender o maior líder da esquerda brasileira.
Cena que se completou mais tarde quando chegou a hora de Lula se entregar, após longa negociação com a Polícia Federal para garantir uma viagem sem exposição à sanha da mídia. Lula sairia de carro do sindicato e se entregaria á PF num local neutro, indo depois para Curitiba num avião monomotor sem identificação da polícia. No entanto, no momento da partida, um grupo de militantes impediu o carro de sair, chegando a derrubar um portão do sindicato. Lula queria se entregar, mas a multidão decidiu não permitir.
O impasse permaneceu por algum tempo e só foi rompido por outra decisão corajosa de Lula: ele saiu a pé do sindicato, escoltado por apoiadores, em mais uma cena emblemática desse dia.
Lula ainda passou por manifestações de apoio no Aeroporto de Congonhas, onde a cena mais emblemática foi a de Luiza Erundina (PSOL-SP) abraçada a militantes com, talvez, um terço de sua idade. Ex-prefeita de São Paulo pelo PT, de onde não saiu nos melhores termos, sempre teve uma relação de encontros e desencontros com Lula e seu partido. Mas aquele momento era de reconhecimento, como disse no carro de som na sexta-feira. “Lula está sendo vítima de perseguição política sabe porquê? Porque ele é nordestino, como eu e tantos aqui (mãos se levantam na multidão)”, afirmou no caminhão de som. “Mas nós somos ousados. Lula veio para cá como retirante como muitos de nós e teve a ousadia de disputar o poder. Disputou o poder sindical e se tornou um líder. Depois criou um partido político e conquistou a presidência. Eles se enganam porque pensam que o Lula é um só, mas ele é cada um de nós”, completou. Para ela, ali, Lula era antes de tudo um conterrâneo.
Em Curitiba, foi recebido por um grupo de militantes no que mais tarde se tornaria o Acampamento Lula Livre, que ocupa as ruas no entorno da carceragem da PF – contra o desejo da polícia, manifesto pelas bombas de gás que jogaram contra os manifestantes de vermelho na noite de sábado, deixando ilesos os poucos de verde e amarelo que comemoravam a prisão do ex-presidente.
No acampamento, os ecos daqueles dias aparecem em uma cena que se repete todos os dias às 9h, quando os militantes do MST e demais participantes se organizam para gritar um “Bom dia, presidente” para Lula. Os advogados confirmaram que ele escuta e agradece.
O futuro
Ainda há, em tese, movimentos para serem feitos no plano jurídico. Novos pedidos de habeas corpus, a revisão da prisão em segunda instância pelo Supremo Tribunal Federal, mas a leitura política dos fatos até aqui não deixa muita esperança. Preso, esperavam seus adversários, Lula seria desmoralizado e perderia votos e capacidade de transferi-los, abrindo espaço para o tal “centro” representado por Geraldo Alckmin e outros candidatos que apoiam todas as duras medidas anti-povo tomadas pelo governo Temer – claramente à direita.
Não é o que mostram, no entanto, duas pesquisas divulgadas nos últimos dias. Na primeira, do Instituto IPSOS, contratada pelo insuspeito Estadão, 55% dos entrevistados acreditam que a Lava Jato faz “perseguição política contra Lula” e 73% acreditam que “os poderosos querem tirar Lula das eleições”.
O Datafolha divulgado nesse fim de semana e com respostas coletadas já depois da enorme exposição da prisão do ex-presidente é ainda mais desagradável para os anti-petistas. Se é verdade que Lula oscilou negativamente, de 34% para 31%, também é verdade que ele mantém o dobro das intenções de voto do segundo colocado – o representante da extrema direita proto-fascista Jair Bolsonaro (PSL) – e vence com ampla margem todas as simulações de segundo turno, seja contra a direita “moderada” representada por Geraldo Alckmin (que não sai de um digito no primeiro turno) ou contra Marina Silva (Rede), que busca votos ao centro.
Para piorar – para eles -, 66% dos eleitores de Lula afirmam que votariam com certeza em um candidato indicado por ele, o que deixaria um petista (Fernando Haddad ou Jaques Wagner são os nome mais citados) ou um aliado (Manuela, Boulos ou, um pouco mais distante, Ciro Gomes do PDT) partindo de um patamar de 20%, o que num cenário pulverizado garante enormes chances de segundo turno.
Lula pode estar preso, mas será, direta ou indiretamente, figura central na política brasileira nas próximas eleições – muito além delas. Se os adversários esperavam enterrá-lo, talvez devessem ter ouvido antes o que disse Bruno, representante do Movimentos dos Pequenos Agricultores (MPA), naquela sexta-feira já histórica. “A mão calejada que alimenta esse país também pode erguer o punho esquerdo e lutar. Quem enfrenta a chuva e a seca para plantar o alimento não vai ser um juizeco que vai impedir de plantar a nossa própria história”, disse . Lula, para ele, é semente.