Vazamento em barragem de rejeitos da empresa Hydro Alunorte provoca contaminação e doenças em cidades do Pará
Por Leonardo Fernandes, do Brasil de Fato
Foi a própria natureza que alertou a população da cidade de Barcarena, no interior do Pará, sobre a grave contaminação dos rios da região, causada pelo vazamento de bauxita das operações da empresa mineradora Hydro Alunorte em fevereiro de 2018. Bastaram dois dias de fortes chuvas para que a subida do nível das águas revelasse a cor avermelhada da contaminação.
Em 17 de fevereiro, o Ministério Público (MP) do Pará recebeu diversas denúncias de moradores, preocupados com a situação. No dia seguinte, fiscais da Secretaria do Meio Ambiente do Estado (Sesma) inspecionaram a mineradora e informaram que não havia vazamento. Os laudos não convenceram.
Acionado pelos Ministérios Públicos Federal e Estadual, o Instituto Evandro Chagas (IEC) coletou amostras de água para testes, e comprovou dias depois que as águas haviam sido contaminadas pelo vazamento de barragens da empresa Hydro Alunorte. A perícia constatou ainda a existência de um duto clandestino que conduzia resíduos poluentes para cursos d’água na região.
Um ano depois da constatação do crime ambiental, a empresa segue negando que tenha ocorrido um vazamento e, com isso, protelando a atenção aos atingidos. É o que denuncia o deputado estadual Carlos Bordalo (PT).
“Lamentavelmente, nenhuma resposta efetiva até hoje foi assegurada a nenhum atingido, a não ser as medidas emergenciais da época, como a distribuição de água e algumas cestas básicas”.
Bordalo conta que uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), criada na época na Assembleia Legislativa do Pará (Alepa), comprovou não só o vazamento, como a origem dele. “Ficou provado pela investigação da CPI de Barcarena que a causa principal do transbordamento e o vazamento de efluentes não tratados da empresa na tragédia de fevereiro de 2018, se deveu a um estresse da planta da empresa que não suportou a escala de produção autoimposta, e que portanto, com uma chuva um pouco maior, essas estruturas não aguentaram e acabaram despejando material não tratado para a bacia do rio Pará e para as comunidades próximas”.
Um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) foi assinado em setembro de 2018 obrigando a empresa, entre outras coisas, a reduzir em 50% a produção de minério e fixando o valor de R$ 65 milhões a serem investidos em medidas emergenciais, como pagamento de uma indenização mensal no valor de R$ 670 reais às famílias atingidas.
Além da CPI criada na Alepa, foi montada na Câmara dos Deputados em Brasília uma Comissão Externa de acompanhamento do caso de Barcarena. O deputado paraense Edmilson Rodrigues (PSOL) coordenou os trabalhos de investigação que envolveram também os Ministérios Públicos Estadual e Federal, a Secretaria de Meio Ambiente do Pará, o Ibama, além de órgãos científicos como o Instituto de Química da Universidade Federal do Pará (UFPA) e o Instituto Evandro Chagas.
“Nosso relatório é muito contundente e muito rico em informações, com dados que realmente desmoralizam a posição da empresa que insiste em dizer que não houve vazamento. Ainda ontem, a empresa disse publicamente que não houve vazamento”, explica Rodrigues.
Uma audiência pública realizada na última sexta-feira (15) significou mais uma frustração para os atingidos. Segundo Jackson Dias, da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o espaço destinado para a realização da audiência não comportava o número de pessoas presentes. Outro problema foi a ausência de representantes da empresa e do governo estadual.
“Essa é a terceira audiência pública após a assinatura do TAC. Foi feita uma audiência em outubro, outra em dezembro, e agora esta em fevereiro. A audiência era para debater os critérios para a reabertura do cadastro e para a criação do comitê de acompanhamento do TAC. A gente pensava que seriam convidadas todas as partes que assinaram o TAC, no entanto, só estiveram presentes o Ministério Público Estadual e Federal. Não estavam presentes a empresa, a Hydro, nem o governo do estado, que assinaram esse TAC. Então isso comprometeu esse processo, pela ausência dessas instituições que são diretamente responsáveis”.
A luta pelo reconhecimento
Não bastasse terem sido diretamente atingidas pela atividade irregular da mineradora, muitas famílias ainda têm que lutar pelo reconhecimento enquanto afetadas. Segundo o deputado Bordalo, a CPI de Barcarena reconheceu algo em torno de 80 comunidades atingidas pelo desastre.
“Há um conjunto de comunidades não reconhecidas como atingidas, porque aqui é onde ficava a grande batalha. O que se estabelece como atingido? Quem são os atingidos? A empresa sempre vai questionar. Para ela, os únicos atingidos, e ainda assim, ‘atingidos de forma parcial’, são as três ou quatro comunidades coladas na planta da empresa. Acontece que a bacia do rio Murucupí e outras áreas atingidas espalharam essa contaminação para muitas outras comunidades, inclusive na bacia do rio Pará. Então é uma batalha jurídico-política que a empresa trava constantemente para não reconhecer comunidades quilombolas e outras comunidades que não estão coladas na planta da empresa, como atingidos ou não”.
O representante do MAB afirma que o número de famílias reconhecidas pela empresa é infinitamente menor do que a realidade da população atingida.
“A nossa estimativa é que são cerca de 15 a 20 mil famílias atingidas por essa poluição na bacia do rio Pará. Só que foram cadastradas até agora cerca de 1500 famílias, que estão recebendo um cupom com um valor mensal. Inclusive vão receber só por cinco meses, ou seja, já está acabando, já que esse TAC foi assinado em setembro”.
Segundo Dias, um dos maiores problemas para o reconhecimento da população afetada é o fato de a própria empresa ter o controle sobre o cadastro dos atingidos.
“A empresa que está reconhecendo as famílias se chama Praxis, e foi contratada pela Hydro. Então a Hydro comete o crime e ela mesma vai dizer quem é a vítima ou não. O poder público é que deveria estar coordenando esse processo do reconhecimento dos atingidos, e não a empresa que cometeu o crime”.
Uma das comunidades que ainda luta pelo reconhecimento é a Cupuaçu/Boa Vista, onde vivem cerca de 900 famílias. Nenhuma delas foi incluída no programa de indenizações da empresa, mesmo sofrendo com a falta de água potável.
Não é a primeira vez
Em 2009, o Ibama já havia multado a Alunorte em mais de R$ 5 milhões pelo mesmo motivo: vazamento de rejeitos em Barcarena. A empresa recorreu das multas que até hoje não foram pagas. O Ibama informou na época que o vazamento colocou a população local em risco e gerou mortandade de peixes e destruição da biodiversidade.
Segundo Bordalo, há mais de duas décadas os desastres socioambientais são comuns na região de Barcarena. “Só em Barcarena são 24 tragédias em 20 anos. O que dá mais de uma tragédia por ano. Chamou mais atenção Minas Gerais porque de fato chama mais atenção a morte imediata de seres humanos. Enquanto que no caso de Barcarena se trata de uma contaminação continuada que se reflete na queda de cabelo das pessoas, nas doenças gastrointestinais, nas doenças de pele, em aparecimento de cânceres estranhos”.
Intimidação
Depois da tragédia, a empresa Hydro Alunorte decidiu entrar com um processo por calúnia e difamação contra o pesquisador do Instituto Evandro Chagas, Marcelo de Oliveira Lima, responsável pelo laudo que confirmou a contaminação em Barcarena.
No processo, a mineradora afirma que Marcelo Lima “expôs opiniões pessoais”, o que comprometeria a isenção do pesquisador. No último dia 7 de fevereiro, o MPF enviou um parecer à Justiça Federal manifestando-se pela rejeição da queixa-crime ajuizada pela Hydro. Para o deputado federal Edmilson Rodrigues, tudo se tratou de uma tentativa de intimidação que não deve ter cabimento jurídico.
“A empresa, tentando constranger o Instituto Evandro Chagas e o cientista que coordena o trabalho de pesquisa, o doutor Marcelo Lima, decidiu entrar com uma ação por danos morais. O procurador federal deu um parecer contrário e me parece que a Justiça está confirmando que não tem sentido processar um cientista que, inclusive, fez o laudo baseado em uma demanda do próprio Ministério Público”.
O que diz a empresa
A Hydro Alunorte afirma estar cumprindo “as cláusulas do Termo de Ajuste de Conduta (TAC)”, assinado em 2018. Segundo a empresa, “o TAC não determina o número de famílias que deveriam ser atendidas”.
A empresa afirma ainda que “trabalha para ampliar a estação de tratamento de efluentes industriais e que presta assistência a mais de 2 mil famílias das comunidades de Burajuba, Bom Futuro e Vila Nova, distribuindo água potável e fornecendo assistência médica à população”.
O que está ruim pode piorar
A situação de Barcarena remete a outras tragédias recentes da história da mineração no Brasil. Em Minas Gerais, Mariana em 2015 e Brumadinho em 2019 chamaram a atenção do mundo sobre o modelo de mineração aplicado no país. Para Jackson Dias, os três casos estão interligados, pois “fazem parte de um modelo mineral no qual o capital financeiro rapina e pilha as riquezas de países emergentes” em nome do lucro, assumindo o risco de tragédias como essas.
“Em Mariana foi isso: quando o preço do ferro subiu a empresa da Vale e da BHP, a Samarco, aumentou a produção mesmo sem estudos do acúmulo do rejeito, e aconteceu o crime. Agora em Brumadinho a Vale foi reincidente. E em Barcarena a mesma coisa. Com o boom do preço da bauxita e do próprio alumínio, eles intensificaram a produção e houve o vazamento na bacia de rejeitos. Então, esses crimes seguem uma lógica, que é a lógica da pilhagem, da rapinagem dos recursos naturais”.
Uma das práticas mais perigosas, alertam os especialistas, é a criação das chamadas “barragens de alteamento por montante”, como a que se rompeu em Brumadinho, em janeiro deste ano. Para Bordalo, esse é um forte exemplo de que as empresas mineradoras “determinam o que querem”, com o silêncio conivente de muitas autoridades.
“Eu acho que o problema do Brasil com a mineração é o modelo. Desde a entrada da mineração no Brasil, o interesse não é o Brasil, não são os cuidados com o povo brasileiro, com o protagonismo das populações. São interesses capitalistas, neocoloniais. E essas empresas mais recentes, quando entram, entram com essa visão de colonizadores. Por exemplo, permitir barragens com alteamento a montante, já é indicativo de que elas determinam o que elas querem. Só agora, depois das tragédias de Brumadinho e de Mariana, se está tomando providências para encerrar atividades que tenham barragens com alteamento a montante”.
O deputado Edmilson Rodrigues alerta para o risco de novas tragédias no estado do Pará. “Das 78 barragens grandes no Pará, temos 73 do tipo da de Brumadinho, que é aquela barragem feita a montante. E algumas são maiores do que Brumadinho, como é o caso da barragem em Paragominas, que tem mais de 21 milhões de metros cúbicos [rejeitos], ou seja, mais que o dobro de Brumadinho, e é uma das que estão em risco potencial com impactos muito graves. Aqui em Barcarena são oito barragens em situação de risco”, denuncia.
Rodrigues e o representante do MAB coincidem na denúncia de que um dos diques do complexo de Belo Monte apresenta um vazamento irregular. Segundo o deputado, a Norte Energia, empresa responsável por Belo Monte, afirmou que trata-se de um canal de drenagem. “No entanto, – alerta – as imagens deixam claro que o vazamento não é parte de uma obra de engenharia, mas um indício de saturação do solo”.
Dois atos estão sendo programados para relembrar a tragédia e exigir reparação às vítimas e ao meio ambiente. Neste domingo (17), é realizada uma concentração na praça da República de Belém, com a presença de diversas entidades e movimentos sociais. Já na segunda-feira (18), os atingidos fazem uma manifestação em Barcarena, em frente à sede da mineradora Hydro Alunorte.
(Foto: Amazônia Real)