Evento realizado em São Paulo pela Abong e Ação Educativa debateu a conjuntura de violações de direitos humanos e os aspectos do racismo sobre o cotidiano das religiões
Por Thais Zimbwe, da Cardume(*)
Das religiões professadas no Brasil, as religiões de matriz africana, principalmente o candomblé e a umbanda, são constantemente vítimas de graves violações de direitos humanos em suas práticas de religiosas. O racismo estrutural que conforma todo o processo de construção da sociedade brasileira, enaltece suas marcas, inclusive nos espaços de culto à fé.
Templos religiosos incendiados, elementos e símbolos vandalizados e pessoas agredidas fisicamente. Os casos de violência aumentam e se agravam em todo o país. No Rio de Janeiro, dados da Secretaria de Estado de Direitos Humanos, mostraram um crescimento de mais de 50% no número de denúncias de 2017 para 2018. Por outro lado, aumentam de forma estarrecedora os crimes de intolerância em redes sociais e programas televisivos, que propagam informações distorcidas e deturpadas sobre essas religiões.
Para Micha Nunes, da ONG Ação Educativa, os debates sobre as violações contra religiões de matriz africana devem ser pautados sob a ótica do racismo religioso. “Não acredito em intolerância, porque ela não parte de uma concepção só da subjetividade das pessoas, ou seja, não tem a ver com valores, quando falamos de Brasil. É fato que as perseguições às religiões em suma de matriz africana (pois é importante lembrar que toda manifestação que não tem como cerne a construção cristã, do homem branco salvador, são perseguidas) tem a ver com a branquitude e tudo o que ela não valida ou rejeita e que tem diretamente uma relação com o apagamento da nossa cultura e não deixariam de fora a nossa religião. Apagaram nossas histórias e memórias através do processo violento de colonização e branqueamento utilizados até hoje. Então sim, fica muito difícil desvincular do racismo essas violências e violações”, explica ela.
A análise conjuntural sobre este tema foi pauta no evento “Religiões & Corpos Negros: um diálogo sobre racismo religioso”, realizado no último dia 29 de novembro, na sede da ONG Ação Educativa em São Paulo. A atividade contou com representação de diversos segmentos religiosos e debateu as cotidianas violações do Estado laico, especialmente contra as religiões de matriz africana, historicamente perseguidas por serem expressões da religiosidade dos corpos negros.
“O debate sobre o processo de branquitude e como ele é violento com os corpos negros deve acontecer nos mais variados espaços, em especial, nos demais grupos religiosos, pois com certeza, a convivência, sociabilização e acompanhamento das pautas nos grupos minoritários, farão com que as pessoas se aproximem e possam ser mais empáticas e compreensivas com essas subjetividades, que não sejam elas definidoras das pessoas e a marginalização e violências deixem de fazer sentido”, completa Micha, integrante da ONG Ação Educativa, uma das realizadoras do evento.
Entre os participantes do diálogo sobre racismo religioso estava Preta Ferreira, produtora cultural, militante no movimento de luta pela moradia e referência em ativismo e luta social. Para ela, discussões como esta são oportunas em reafirmar corpos, atitudes, ações e até religião como processos políticos. “Nossa visão vem da dor, nossos corpos pretos emanam dor. A religião foi um dos nossos primeiros tesouros que tentaram destruir, para ter o domínio dos nossos corpos. Mas, somos resistência, a religião liberta”, comenta ela.
Dados do Disque 100, um serviço que pode ser considerado como “pronto socorro” dos direitos humanos, mostram que entre quase 1.000 denúncias recebidas entre 2011 e 2018, 59% são referentes a religiões de matriz africana. E entre as vítimas da intolerância religiosa, 59% são negras e 53% são mulheres.
A constatação do racismo no cenário religioso também foi demarcada por Eliad Dias dos Santos, teóloga, Pastora da Igreja Metodista e membro das Evangélicas pela Igualdade de Gênero. “Sou protestante desde criança protestante, meu pai é metodista e minha mãe é de umbanda, e eu sempre aprendi que tudo relativo a religiões de matriz africana era coisa do demônio. Nas religiões protestantes, o racismo já começa aí. Deus é branco. Jesus é branco. A pomba é branca. É difícil construir relações de identificação quando se é protestante e negro”, afirmou Eliad durante o encontro na Ação Educativa.
São muitas as evidências que demostram que nenhum outro segmento religioso sofre tamanha agressão e encontra tanta resistência de liberdade de culto e respeito às suas práticas seculares como as religiões de matriz africana. Esse é o principal consenso entre os debatedores e participantes do diálogo “Religiões & Corpos Negros: um diálogo sobre racismo religioso”.
“Eu quero ser respeitada e ter o direito ao meu culto garantido. O racismo religioso é só um braço do racismo. Quando a gente entender o racismo estrutural, como a gente combate, consequentemente a gente vai começar a tratar o racismo religioso. As pessoas não entenderam que as religiões de matriz africana é uma herança, ancestralidade, resistência”, finaliza Bia Rodrigues, mediadora do evento, professora de dança dos Orixás, articuladora do Conselho de Povos Tradicionais de Matriz Africana e Iyá Ojubona do Ilê Opo Oba Tonile.
Como denunciar?
As denúncias de casos de intolerância e discriminação religiosa podem ser feitas por meio do Disque 100. Durante a denúncia será necessário informar quem foi a vítima, qual foi a agressão e quem a praticou, além do endereço ou ponto de referência do local, o horário aproximado, a situação da vítima e qual órgão foi acionado.
—
(*)CARDUME – Comunicação em Defesa de Direitos é uma rede que reúne organizações e movimentos da sociedade civil para ações articuladas de comunicação que potencializem a promoção e defesa de direitos e bens comuns.