O contexto político institucional vivido no Brasil com o Golpe que levou Michel Temer ao poder arremessou o país para tempos temerosos e de caos. Forças reacionárias, hostis a tudo o que cheire aos direitos e aspirações do povo, consolidaram-se, dando inicio a um ciclo que exigirá de nós muita resistência, luta, teimosia e clareza no caminho a seguir. Além do já conhecido contexto de paralisação da Reforma Agrária e de violência no campo provocada pelo latifúndio, o ano ficou marcado pelo forte e grave ataque aos direitos historicamente consolidados e à vida da população mais injustiçada, como as comunidades do campo, das águas e das florestas.
Conflitos no Campo
Em 2016, os índices de violência em conflitos agrários atingiram os piores níveis dos últimos anos. De acordo com os dados parciais da CPT, no ano que se encerrou, o latifúndio e as empresas capitalistas encharcaram a terra com o sangue de 59 pessoas, brutalmente assassinadas por lutarem por direitos, pela Reforma Agrária e por seus territórios tradicionais. O número foi o maior desde 2003, quando 71 pessoas foram assassinadas em conflitos no campo. O Estado de Rondônia ocupa o topo dessa soturna lista, seguido do Maranhão e do Pará.
Um dos casos que mais chocou o País foi o assassinato da integrante do Movimento dos Atingidos/as por Barragens (MAB), Nilce de Souza Magalhães, em Porto Velho/RO, ocorrido em janeiro de 2016. Nilce era conhecida por sua militância e luta contra as violações de direitos atribuídas ao consórcio responsável pela construção da usina hidrelétrica de Jirau. A militante desapareceu no dia 7 de janeiro, mas o seu corpo foi encontrado somente em junho, amarrado a pedras, nas profundezas do lago de Jirau.
Outro assassinato que gerou comoção e repercussão nacional foi o do trabalhador rural e liderança do PT, Ivanildo Francisco da Silva, de 46 anos. Ivanildo estava acompanhado de sua filha, de um ano de idade, quando foi assassinado com um tiro na cabeça, no dia 06 de abril, no assentamento Padre João Maria, em Mogeiro/PB. O corpo foi encontrado na manhã do dia seguinte. A criança estava ao lado do pai morto, chorando e suja de sangue. Assim como Nicinha, Ivanildo também era conhecido por sua atuação política e por denunciar a violência na luta pela terra na região. O trabalhador já havia sido vítima de ação da pistolagem em anos anteriores.
Além dos assassinatos ocorridos em decorrência dos conflitos por terra e território, outros tipos de violências no campo, contra a posse da terra e contra a pessoa, ocorreram com índices exorbitantes, como as ameaças de morte, perseguições, intimidações e destruição de lavouras e casas. A Região Norte foi, sem dúvida, a que mais registrou ocorrências de conflitos agrários no Brasil, seguida da Região Nordeste, do Centro-Oeste, do Sudeste e, por último, da Região Sul, de acordo com os dados parciais da CPT. Consolidando a tendência observada nos últimos anos, as comunidades tradicionais e as famílias posseiras seguiram em 2016 sendo as mais atingidas pelo latifúndio, pelo agronegócio, pela mineração e por grandes obras de infraestrutura – principais causadores, na atualidade, de conflitos agrários no País. Todos esses conflitos evidenciaram a supremacia e as finalidades da ganância com que o capital combateu os povos do campo.
Um exemplo nítido do ataque devastador, em particular, contra as comunidades tradicionais indígenas e quilombolas, tem sido o Plano de Desenvolvimento Agropecuário do que se chama Matopiba (que envolve os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). Nessa área, que é considerada a fronteira agrícola nacional mais cobiçada na atualidade, foram dezenas os casos de violência, dentre eles pistolagem, destruição de lavouras e casas, expulsões, despejos, ameaças de despejos e obstrução do acesso à água. Essas e outras brutalidades foram amplamente denunciadas pelas comunidades da região em 2016, alertando que o malsinado Projeto não somente se apropria dos territórios tradicionalmente ocupados, mas o fazem destruindo o Cerrado, berço das águas brasileiras e possuidor de uma vasta biodiversidade.
Reforma Agrária
No ano de 2016 foi promovida uma devastação generalizada e sistemática do conjunto das políticas destinadas às comunidades camponesas e aos trabalhadores/as rurais. A crônica paralisação das ações da Reforma Agrária e a redução severa dos recursos destinados ao Incra já eram velhas conhecidas dos povos do campo. No entanto, a conjuntura política do país e as medidas reacionárias postas em prática em 2016 impulsionaram o contexto de violência vivido pelas comunidades camponesas no Brasil.
No que diz respeito aos números da Reforma Agrária, o Incra Nacional informou à CPT NE 2 que os dados referentes à condução do Programa (assentamentos criados, hectares destinados, famílias beneficiadas etc.) só serão divulgados em janeiro de 2017. No entanto, os movimentos e organizações do campo denunciam que no ano de 2016 nenhuma família foi assentada e nenhuma propriedade que descumpre a função social da terra foi desapropriada para fins de Reforma Agrária, como determina a nossa Constituição Federal.
Em abril de 2016, o Programa de Reforma Agrária foi suspenso, em virtude do Acórdão nº 755/2016, do Tribunal de Contas da União (TCU), sendo parcialmente liberado apenas em setembro último. A medida paralisou a criação de novos assentamentos, novas concessões de benefícios, de assistência técnica e de créditos, impactando e deixando desamparados milhares de trabalhadores/as rurais assentados/as e sem-terras que nada tinham a ver com as irregularidades que foram alegadas para motivar a suspensão do Programa.
Esse quadro se agravou durante o processo que culminou no golpe de Estado parlamentar em 2016. De fato, outras medidas levadas a cabo pelo Poder Executivo brasileiro, sob o comando de Michel Temer, desmontaram algumas políticas importantes para os/as trabalhadores/as, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da Agricultura Familiar. Entre tantas outras ações reacionárias, destacaram-se: a dissolução do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que passou a fazer parte do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário; a nomeação de um dos maiores produtores de soja do mundo, Blairo Maggi, para o Ministério da Agricultura; a transferência dos órgãos responsáveis pela Reforma Agrária para a Casa Civil, colocando-os mais ainda sob o controle de um governo que tem nítidas intenções de violar direitos fundamentais da cidadania e aniquilar as comunidades camponesas. Dentro do pacote de medidas anticamponesas, o Governo ilegítimo de Michel Temer também extinguiu a Ouvidoria Agrária Nacional, criada com o objetivo de prevenir e mediar os conflitos agrários.
Ainda que todos esses órgãos tenham atuado com intensas limitações ao longo de suas existências, representavam, ao menos, uma possibilidade de intervenção, de cobrança e mediação que, embora não tenham avançado a reforma agrária, contribuíam para atenuar os duros impactos das ameaças, despejos e outras violências contra os povos do campo, das águas e das florestas.
Mais recentemente, no dia 22 de dezembro, entrou em vigor a Medida Provisória (MP) 759/2016 editada por Michel Temer e que alterou substancialmente as normas relativas à Reforma Agrária no Brasil. A MP já possui efeitos instantâneos, mas ainda precisa ser aprovada pelo Congresso Nacional para ser transformada definitivamente em lei. Inserida em um contexto mais amplo, de implementação de um modelo avassalador e reacionário para o campo, a MP possui diversos aspectos que são vistos com grande preocupação e indignação pelos movimentos sociais de luta pela terra e pelo território.
Tal MP atribuiu às Prefeituras a responsabilidade de fornecer a relação de famílias a serem assentadas. Ora, é especialmente nas pequenas cidades que o coronelismo e a compra de votos são escancarados, além de ser muito forte a interferência no poder local por parte dos grandes latifundiários. Em consequência, é bastante grave e gerador de profunda apreensão esse deslocamento de poder para os poderes executivos municipais. Ademais, a medida impedirá que os movimentos sociais de luta pela terra indiquem a relação das famílias a serem assentadas, configurando mais uma tentativa de deslegitimação dos que possuem compromisso com a luta pela Reforma Agrária. Nesse sentido, é indispensável destacar que o Incra só desapropria propriedades quando as organizações do campo pressionam, ocupam e indicam ao Estado a existência de milhares de famílias que ainda não possuem terra para trabalhar e viver. Os movimentos são propositivos e suas ações são essenciais para exigir que o Estado cumpra com a nossa Lei Máxima. Portanto, as organizações do campo, ao contrário das prefeituras, possuem legitimidade para indicar as propriedades e relacionar as famílias que estão reivindicando seus direitos de acesso à terra.
Outro grande retrocesso contido na MP é a diminuição do prazo durante o qual os títulos de domínio e a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) não poderão ser negociáveis. Assim, as famílias assentadas levarão menos tempo para serem emancipadas, o que acarretará a redução das responsabilidades do Incra com os/as trabalhadores/as rurais, além de torná-los mais vulneráveis à pressão para que as terras retornem aos latifundiários, uma vez que não há políticas estruturantes que assegurem a permanência no campo com dignidade. Ademais, a Medida Provisória do governo ilegítimo de Michel Temer beneficia os grandes proprietários de terra ao assegurar que os imóveis adquiridos, por compra ou arrematação, poderão ser pagos em dinheiro. De acordo com Gerson Teixeira, presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), com tal medida “o governo subverte o programa de reforma agrária, pois a desapropriação sancionatória dos latifúndios perde de vez a possibilidade de liderar o processo de obtenção de terras. A compra e venda assume essa condição, transformando as grandes propriedades em ativo financeiro de grande atratividade. O Incra será transformado num grande balcão de compra e venda de terras”.
Ofensiva no Legislativo
Ameaçados por todos os lados, os/as trabalhadores/as rurais e comunidades camponesas tiveram que resistir a várias agressões para continuar existindo. De um lado, o avanço do agronegócio, de grandes empresas e de projetos de infraestrutura colocou em risco os seus territórios tradicionais e os bens naturais por eles defendidos, acarretando um cenário de conflitos não vivenciado no País há vários anos. De outro lado, houve a dissolução de espaços de mediação e a suspensão da política de Reforma Agrária. Aliado a esse cenário de violência física e institucional, as comunidades camponesas foram um dos principais alvos do Poder Legislativo, com a sua atual composição caracterizada como a mais reacionária e mais corrompida da história brasileira.
Entre incontáveis medidas opressoras, ressaltamos a Proposta de Emenda Constitucional 55 (PEC 55), aprovada pelo Senado, em dezembro de 2016. Conhecida pelo povo brasileiro como a PEC da Morte, essa proposta limitará drasticamente, por até duas décadas, os gastos públicos em áreas fundamentais, como saúde, educação e, inclusive, a Reforma Agrária. A PEC, considerada por relatores da ONU como um “erro histórico” que causará graves impactos à população mais vulnerável do país, é um forte exemplo de que os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário atuam de maneira articulada para suprimir direitos e para impor uma agenda neoliberal, sem levar em consideração a desaprovação e indignação da população brasileira.
2016 também foi o ano em que diversas pautas propostas pela bancada ruralista contra o povo do campo ganharam destaque e prioridade no Congresso Nacional. Uma delas é o projeto de lei que flexibiliza a aquisição de terra por estrangeiros. O PL 4059/2012, de autoria do Senador licenciado e atual Ministro da Agricultura, Blairo Maggi, tem como objetivo permitir que estrangeiros (pessoas físicas ou jurídicas) comprem grandes quantidades de terras no país. Além dessa, outras propostas abrigam sérios riscos de serem aprovadas, causando um retrocesso sem precedentes para o País e, em especial, para o campo brasileiro, como a PEC 65/2012, já aprovada no início de maio de 2016 na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado e que simplifica o processo de licenciamento ambiental, prevendo que, uma vez apresentado o estudo de impacto ambiental, nenhuma obra poderá mais ser suspensa ou cancelada; a PEC 122/07, que possibilita a implantação de manejo de usinas nucleares por outros países e empresas estrangeiras dentro do Brasil; assim como o novo Código da Mineração (PL 37/2011), que pretende simplificar os procedimentos necessários para a execução de atividades minerárias, que causam vastos impactos ambientais e às comunidades das áreas afetadas.
(Arte Home: Reprodução CPT)