Iniciativas feministas saem do papel por meio de financiamentos coletivos na internet e promovem mudanças de vidas através do empoderamento feminino e da criação de alternativas que saiam dos padrões de beleza
Por Marcela Reis, do Observatório
O financiamento coletivo, conhecido como crowdfunding, têm permitido a realização de projetos idealizados por mulheres que desejam fazer transformações nas vidas de outras mulheres. Estas ferramentas de captação de dinheiro na internet para produtores independentes têm contemplado ideias feministas principalmente ligadas ao mundo das artes e que agora têm a possibilidade de se tornarem realidade sem a necessidade de intermediários como grandes empresas patrocinadoras ou editais.
A internet, com seu potencial de liberdade, dá o direito das pessoas terem contato com projetos alternativos e que não se encaixam nas publicidades de grandes marcas, nos programas de televisão e no que é veiculado em veículos tradicionais. As plataformas de financiamento coletivo possibilitam que redes de autonomia e criação ganhem espaço em detrimento do consumo desenfreado e das iniciativas privadas.
A arrecadação nesse tipo de plataforma é feita a partir de doações de internautas, que podem contribuir com valores que podem variar de entre 10 e 20 reais até o quanto quiserem e puderem. Como agradecimento, os/as criadores/as dos projetos garantem recompensas, como assinatura dos nomes dos/as contribuidores/as no produto final, cópias das obras ou outros brindes.
Nas plataformas, as iniciativas, criações, responsáveis e objetivos são explicitados, além das metas de arrecadação para que o projeto seja viabilizado. Em alguns casos, se o valor não seja alcançado, o projeto não acontece e os valores são devolvidos para os doadores. Estes/as podem ver quanto falta ainda para que a meta seja atingida e o número de pessoas que estão ajudando.
Diversos projetos criados por mulheres e para mulheres têm usado o crowdfunding como meio de arrecadação financeira para que iniciativas feministas ganhem concretude e visibilidade. Propostas que têm como objetivo a quebra dos padrões estéticos, da heteronormatividade, do machismo e da violência doméstica contra mulheres. E que buscam o empoderamento feminino, a proteção às mulheres e a representatividade nas artes.
Literatura
Um exemplo de projeto viabilizado dessa maneira é a história em quadrinhos (HQ) Menina Distraída, criada pela jornalista Vanessa Bencz, de 29 anos. O trabalho, que busca conscientizar jovens e promover a igualdade e o respeito, foi financiado por doações conseguidas por meio do site Catarse.
O tema tem um apelo especial para a escritora, que sofreu na escola com xingamentos e apelidos que a diminuíram enquanto mulher. A situação, no entanto, não é exclusividade da autora. Cerca de 13,8% das meninas são alvo de bullying nas escolas; número maior do que o de meninos, que chega a 12,5%. O dado faz parte do II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), pesquisa feita pela Unifesp e divulgada em 2014.
Bencz conta em seu projeto a história de uma menina de 14 anos que é distraída, luta e adora desenhar. A protagonista sofre bullying pelos companheiros de sala e resolve enfrentar seus medos e desafios superando tudo aquilo. O livro é uma forma de incentivo para que meninas se empoderem e amem a si mesmas.
“Quando resolvi fazer a HQ, me surpreendi com a quantidade de pessoas que me provocou falando que o cenário de comics era apenas para meninos. Achei isso um absurdo, mas me deu muita vontade de provar que essa ideia é totalmente preconceituosa e machista. Mulheres podem sim ser desenhistas, roteiristas e, sobretudo, porta-vozes de campanhas como a minha através dos quadrinhos”, conta a jornalista.
O projeto ultrapassou sua meta de R$ 16 mil no 30º dia de campanha no ar: foram arrecadados R$ 21,3 mil de 309 apoiadores/as.
Bencz hoje dá palestras a estudantes nas escolas e está trabalhando na continuação da Menina Distraída e no lançamento de outra HQ. Ela espera que o livro alcance cada vez um número maior de jovens e promova mudanças na direção da igualdade. Ela fala com alegria do que conquistou com o projeto: ‘’o retorno pessoal que eu esperava deste trabalho eu já tive; ter ele em mãos é uma alegria, é a minha vitória. Eu venci aquele professor do ensino médio que um dia falou que eu seria uma vergonha. Eu venci as pessoas que me apontaram o dedo e riram. Eu venci a mim mesma, porque por muito tempo acreditei nas coisas ruins que me falavam’’.
Cinema
O filme Formigueiro – A Revolução Cotidiana das Mulheres, que está sendo produzido por cinco militantes da Marcha Mundial das Mulheres, vai contar a história de mulheres brasileiras que sofrem com o machismo enraizado na sociedade e lutam pela libertação. As idealizadoras do projeto estão viajando e percorrendo as cinco regiões do país, para documentar a luta das mulheres rurais, urbanas, negras, indígenas, jovens e lésbicas que apresentam alternativas a suas realidades e que têm grandes histórias para contar.
“Acredito que as redes sociais e a internet são ferramentas muito poderosas para a luta feminista. Temos a oportunidade de sermos emissoras de conteúdo e de nos conectarmos com outras mulheres que compartilham das mesmas ideias e das mesmas opressões. Nós precisamos ocupar as redes e nos apoderar ao máximo dessa ferramenta poderosa de comunicação, mas sem nos esquecermos de que para a maioria das mulheres brasileiras o acesso à internet ainda não é uma realidade”, conta Bruna Provazi, de 29 anos, uma das criadoras do projeto, que é jornalista e educadora popular.
O desafio das mulheres no campo cinematográfico também é grande. Apenas 18% de todos os diretores, produtores, roteiristas, diretores de fotografia e editores que trabalharam nos 250 filmes de maior bilheteria dos Estados Unidos em 2012 são mulheres. E 38% desses projetos empregaram nenhuma ou apenas uma mulher em alguma dessas funções, segundo estudo de Martha Lauzen, pesquisadora da Universidade Estadual de San Diego.
A situação não é muito diferente no cenário atual do cinema independente brasileiro: a maior parte das iniciativas produzidas é dirigida por homens. Além da representatividade do filme, que está sendo realizado por mulheres a partir das vivências de outras mulheres, ainda há a importância de o machismo ser debatido no Brasil.
Através do financiamento coletivo no site Benfeitoria, as realizadoras já conseguiram 25% da primeira meta necessária para terminarem as gravações e pretendem lançar o trabalho no ano que vem. Provazi conta que, além da ajuda financeira, diversas pessoas têm apoiado e desejam ajudar: “chegam diariamente contatos de mulheres que querem fazer parte do projeto de alguma forma, e que já estão mobilizando suas redes pessoais para contribuírem com o financiamento. Isso é o que nos move todos os dias a continuar nessa batalha”.
Fotografia
As fotos são instrumentos de conscientização mais diretos, rápidos e que alcançam um maior número de pessoas. O projeto Nós, Madalenas – uma palavra pelo feminismo é o resultado de um apanhado de fotografias de diversas mulheres de diferentes formas, cores, sexualidades e idades, apresentadas sem pós-produção. A ideia de mostrar mulheres reais e fora dos padrões estéticos estabelecidos pela mídia é da fotógrafa Maria Ribeiro, de 29 anos.
Retratos individuais em preto e branco de mulheres com palavras de resistência escritas em seus corpos serão reunidas em um livro, que já tem metade da meta financeira alcançada pelo crowdfunding no site Benfeitoria.
“As imagens abordam uma expressão do que significa ser mulher em uma sociedade machista, excludente e preconceituosa. A exposição da dor, da frustração, da luta que consiste conviver em uma sociedade patriarcal onde as mulheres são educadas e formadas a partir de uma concepção predatória e autodestrutiva”, explica Ribeiro.
Sensibilidade, luta, coragem, empoderamento: são algumas das palavras escolhidas pelas mulheres fotografadas para darem significado ao feminismo e à opressão sofrida diariamente. O projeto é uma alternativa à figura de mulheres sexualizadas e padronizadas nas fotos de campanhas publicitárias, programas de televisão e capas de revistas, uma prática constantemente denunciada pelos movimentos feministas e que é tratada como normal pela sociedade. Prova disso é que, das 18 denúncias de machismo em propagandas recebidas em 2014 pelo Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária), apenas uma foi considerada e rendeu advertência e suspensão para a empresa que criou a campanha. A informação foi coletada pela Agência Pública no começo deste ano.
“O projeto em si é um divulgador da causa e as pessoas que têm acesso ao mesmo acabam refletindo acerca do tema, o que é o objetivo. Com o financiamento coletivo divulga-se mais a iniciativa e, a meu ver, isso traz maior engajamento e propagação da pauta em questão”, acredita Ribeiro.
Moda
O brechó on-line Vovó Alice é baseado em uma nova definição de consumo e propõe que mulheres comprem o que desejam e se sentem confortáveis por um preço acessível, e se desfaçam do que não usam mais. A maior parte das roupas é a partir do número 46, oferecendo às mulheres peças que saem dos padrões de formas e pesos e que contemplam mulheres gordas.
Kirianne Mieko Fonseca Miasaki, de 26 anos, é a administradora da loja e elaboradora do projeto Kombi Brechó, que tem o objetivo de promover encontros com discussões sobre moda, política e artes para mulheres em diferentes cidades do país.
“Sinto uma grande necessidade no mercado de moda feminino de brechós com seleção de produtos acessíveis. Fora a questão da estética, que pode empoderar ou destruir a autoestima. O projeto é atingir o maior número de mulheres levando moda sustentável, acessível e com conteúdo enriquecedor: ‘seja você e vista aquilo que te faça feliz’”, relata Miasaki.
A meta financeira do crowdfunding ainda não foi alcançada, mas a criadora do projeto é otimista: “a importância de usar esse tipo de plataforma é o sentimento de pertencimento e coletividade. Além de ser transformadora por oferecer a oportunidade de financiamento de projetos nada convencionais no mundo dos negócios, também dá visibilidade para pessoas com potencial de transformação social”.