Na avaliação de representantes da Abong no Conselho Internacional do FSM, um outro mundo possível só será construído com a participação de jovens e dos novos movimentos horizontais
Por Nicolau Soares, do Observatório
Num momento de profundas dúvidas sobre a força e o futuro do Fórum Social Mundial, a cidade de Porto Alegre deu uma nova demonstração da capacidade de articulação e inspiração do processo iniciado em 2001. O Fórum Social Temático 2016 “FSM Porto Alegre 15 anos” reuniu milhares de pessoas durante cinco dias na capital gaúcha, com marcante participação de jovens.
Em mesas de convergência e dezenas de atividades autogestionadas, o Fórum reafirmou a sua importância, mas também procurou fazer uma leitura crítica de sua história. “Quando surgiu em 2001, o FSM estava dentro do contexto de um pensamento único neoliberal e surgiu com a proposta justamente de contestar esse paradigma de desenvolvimento, essa cidadela do pensamento único, colocando a possibilidade de um outro mundo possível, com justiça social e sustentabilidade ambiental”, recorda Damien Hazard, diretor executivo da Abong e membro do Conselho Internacional do Fórum.
“O Fórum Social Temático, de certa forma, encerra um ciclo no processo do Fórum Social Mundial”, concorda Mauri Cruz, diretor da Abong no Rio Grande do Sul e um dos responsáveis pela organização do Fórum Social Temático 2016. “O Fórum de 2001 tinha um protagonismo muito grande de homens, intelectuais de esquerda europeus, essa era a cara do Fórum. Eles falavam que precisava ter protagonismo da sociedade civil e isso existe hoje. As organizações e movimentos ocuparam o espaço do Fórum. O FSTemático é um evento dirigido por mulheres, jovens, principalmente jovens negros da periferia e não só do Brasil, mas da América Latina e do mundo”, afirma.
Mas, não foi apenas a organização do FSM que mudou desde 2001. Nestes 15 anos, o mundo tornou-se mais complexo e as organizações que deram início ao FSM têm parte nesse processo. “Nosso contexto hoje é difícil. Não se fala mais de socialismo, como se falava em 2001. Nas faixas da marcha de abertura, a palavra que mais se via era democracia, não socialismo. Isso quer dizer que em 2001, estávamos numa fase de lutas ofensivas, enquanto agora estamos desenvolvendo lutas defensivas”, exemplifica Boaventura de Souza Santos, sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).
Para ele, uma das mudanças ocorrida nesse período foi exatamente a chegada ao poder, em diversos países da América Latina, de governos ligados ou apoiados por muitos dos movimentos que criaram o Fórum. Estas experiências trouxeram diversos avanços no campo social e na participação política, mas também levaram os movimentos a, nos termos de Boaventura, descansar. “Os movimentos que lutavam na América Latina conseguiram que governos de esquerda chegassem ao poder e, então, concluíram que tinham amigos no poder. E descansaram. Mas os direitos que conquistamos não são irreversíveis, temos que lutar por eles. Mesmo depois de conquistar leis no papel, temos que lutar para que sejam realidade. Para que o Direito e os direitos possam ser emancipatórios, tem que ter luta política”, afirmou o sociólogo em sua fala na Assembleia dos Movimentos Populares, que encerrou o Fórum Social Temático.
Uma das jovens presentes, a secretária de Juventude do PT-RS Adriele Manjabosco, em fala durante debate organizado pelos movimentos estudantis, exemplificou o contexto citado por Boaventura. “Tivemos avanços para a juventude brasileira nos últimos 15 anos. O Estatuto da Juventude, o número de jovens na universidade pública aumentou muito, bem como o número de negros, o emprego aumentou. Mas ainda são só 17% dos jovens que estão nas universidades, os jovens negros estão morrendo nas periferias. Há muito que avançar e não vamos aceitar retrocessos”, avaliou. “Queremos um mundo de direitos para todos. Direito de viver, de sonhar com o futuro, de expressar sua cultura e sua ideologia.”
Para Damien, o FSTemático foi um evento preparatório nesse processo, que começou já na última edição, na Tunísia, e pode alcançar um novo patamar no Canadá, em julho, quando será realizada a primeira edição do evento num país do norte do mundo.
Em sua análise, a última década é marcada pelo surgimento de novos movimentos sociais, com formas de organização mais horizontais, que conseguiram uma articulação muito ampla, em especial com a juventude. “Isso desafia o FSM, que foi criado por organizações mais tradicionais, como a própria Abong, com um tipo de representação mais hierárquica. Isso nos desafia a fazer a ponte entre esses novos movimentos e os mais tradicionais. Nós só vamos construir esse outro mundo possível com a participação dessa juventude e desses movimentos que de fato conseguiram em alguns países, como no mundo árabe, derrubar ditadores e implementar sistemas mais democráticos”, afirma.
Moara Saboia, da Marcha Mundial de Mulheres e do Coletivo Enegrecer, também destacou durante a mesa dos movimentos estudantis a necessidade de abertura do Fórum para a juventude. “O FSM não pode ignorar os jovens. Aqui temos jovens de organizações tradicionais, como a UNE e UBES, mas que sabem dialogar com as novas formas de mobilização. Tem que fazer passeata, mas tem que ir para as redes também. Tem que ir para o Congresso fazer pressão, mas também para a periferia”, disse Moara, que também é vice-presidente da UNE.
“Nós fomos para as ruas mostrar que não seríamos a geração que aceitaria a redução da maioridade penal. E fizemos de formas irreverentes, diferentes, com shows, batucadas. Falamos das formas mais variadas possíveis que o [Eduardo] Cunha não ia tirar a pílula do dia seguinte”, destacou.
Ela lembrou uma das músicas cantadas em protestos contra o genocídio da juventude negra e a violência policial: “Arrasta a mulher negra, some com o pedreiro. A guerra às drogas está matando o povo negro” “É uma forma de denunciar a PM, de dialogar com a população. Cada musiquinha, cada hashtag é uma forma de dialogar com a população”, afirmou.
Damien explica por que a escolha da Tunísia como palco do FSM foi muito importante. “O Fórum lá continuou sendo realizado por organizações mais antigas, com história na Tunísia e na região do Magreb (noroeste da África), mas eles fizeram a ponte com a juventude mais revolucionária que já aspirava outros ideais e paradigmas. Agora chegamos ao Canadá, onde quem está à frente do processo é a juventude e movimentos que estiveram envolvidos nas grandes mobilizações, como o Ocuppy Wall Street, nos EUA, e o Carré Rouge, que são os movimentos estudantis do Canadá, em especial da região do Quebec”, destacou.
A fala de Carminda MacLorin, jovem negra que representou no FSTemático as organizações que estão à frente do Fórum Social Mundial em Montreal, reafirma a esperança de Damien. “Queremos que nossos sonhos sejam transnacionais e transversais. No Canadá precisamos de sua experiência. Queremos fazer parte desse movimento global de mudança que o Fórum representa.”