Ativista cultural e político analisa os avanços e desafios dos moradores de comunidades à luz das celebrações do Dia da Favela
Por Thais Zimbwe, da Cardume(*)
O Rio de Janeiro é o estado com maior concentração de pessoas que vivem em favelas, aproximadamente 22% da população. Em todo país, mais de 11 milhões de pessoas ocupam esses territórios, de acordo com dados de Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
No estado, desde 2005, a partir de um movimento da organização Central Única das Favelas, celebra-se o “Dia da Favela”, uma data de reflexão e comemoração dos valores e conquistas de uma população, que apesar dos inúmeros estigmas, consagra-se a partir das barreiras perenes de preconceitos e violações.
“Pertencer à favela é viver a cada dia com a possibilidade de transformar seu território, um espaço marcado pela luta constante por direitos, resistência, esperança e também estigmatizado pela violência, negligência e um cenário de violações constantes”, enfatiza Anderson Quackl, ativista cultural e político. Com uma trajetória de militância e ativismo em favor da garantia de direitos para a favela e comunidades periféricas, Anderson carrega em suas raízes o compromisso constante pela valorização do território como espaço de resistência em constante progresso.
Em entrevista durante o 1º Festival Favela Literária, realizado na última segunda-feira (4), no Rio de Janeiro, Anderson apresentou alguns elementos do processo histórico que colaboram, até hoje, para uma realidade de privações para os moradores desses locais; mas, também, trouxe a perspectiva e um futuro promissor, principalmente para a população jovem atual, inserida em universidades, empreendedoras e narradores da sua própria história em produções literárias.
Qual a importância do Dia da Favela para quem vive e mora nesse território?
Anderson Quack – A data tem uma importância múltipla, tem muitos aspectos relevantes e o primeiro deles é mandar uma mensagem nacional de um lugar que habitam mais de 11 milhões de brasileiros. A importância de desconstruir uma perspectiva reforçada por uma grande mídia sobre um conjunto de pessoas associadas sempre a um universo de violência, associadas a violência que está ligada ao tráfico de drogas, sobre o fato de ser a única tônica possível para esse lugar.
Nossa proposta é ressignificar e combater estereótipos, enaltecer tudo que há de melhor em nosso território. É um dia de celebração, um dia de resistência. Um dia para exaltar uma esmagadora maioria de aproximadamente 98% de favelados que vivem e sobrevivem, trabalhadores, artistas, pessoas comuns, cidadãos de bem.
Muito se afirma que a favela é o espaço social de quem não tem opção por outro lugar. Logo, submete-se a qualquer anulação de direito social. O que você acha disso?
Anderson Quack – A favela está em progresso, está em constante construção. A favela não tem uma narrativa fechada e talvez nunca teremos, e isso é muito bom. Ela passou por muitos processos até chegar no formato que temos hoje.
A favela no seu processo histórico já foi um lugar em que se habitava por pura e simples necessidade. Inclusive o nascedouro da favela se dá por uma falta de compromisso do governo em cumprir com sua promessa de dar moradia às pessoas que fossem para a guerra. Então, elas voltam e habitam o território, atualmente o Morro da Providência. Além de ser a opção de quem não tinham outro local para morar, era também um local repleto de ausência de políticas públicas. Uma questão que vemos até hoje, uma nociva falta de estrutura, de saneamento básico, segurança, mas um local que busca constantemente evoluir, se transformar e melhorar.
Como você avalia o pertencimento social dos moradores de favela quando estão em outros espaços públicos?
Anderson Quack – O rapper Mano Brown eternizou os versos: “Você pode sair da favela, mas a favela nunca sai de você”. “Se eu tiver que voltar para a favela, vou voltar de cabeça erguida”. Nesse território é aonde plantamos nossas raízes, cultivamos nossas amizades, nós nos formamos, quem é favelado costuma dizer que a favela é a nossa escola.
A ausência de políticas e investimentos reais em processos de educação formal fez com que muitos de nós não incorporássemos o estudo acadêmico e formal como uma prática de evolução formativa de um cidadão comum. A favela normalmente estuda até aonde dá. Com isso, ela vai encontrando outras narrativas para estar no mesmo lugar do ponto de vista de formação social, se nos faltam ou se nos negam a academia, nós criamos outras estratégias, como Luiz Gama criou estratégias para lutar contra o sistema de opressão, e tantos outros líderes de nossa referência criaram. A favela se sente muito pertencente da sua própria narrativa aonde quer que esteja.
Sobre políticas públicas na atual conjuntura. O que chega de fato nas comunidades?
Anderson Quack – Políticas Públicas sempre foi um tema muito insipiente nesses territórios. Pelo aglomerado de eleitores, vivemos sempre muitas promessas, e na sequência vivenciamos governos que esquecem completamente esses territórios. A única via que chega em nossos espaços é via repressora dos aparatos de segurança pública.
Tirando esse contexto urgente e latente de violações, cabe destacar dois processos que são referência e substancias para visibilizar o que de mais positivo temos em duas áreas: o esporte e a educação, com as iniciativas do CIEP, todo o formato original de um modelo educacional elaborado pela integralidade de formação do aluno. E as Vilas Olímpicas, importantes polos de formação em esportes de alto rendimento que exportam muitos talentos e os resultados, até hoje, são bastante positivos.
O Dia da Favela surge como uma marca de fortalecimento para os moradores. Quais são principais talentos produzidos nas comunidades?
Anderson Quack – Os talentos na favela são múltiplos e diversos, do ponto de vista acadêmico, depois do advento das cotas sociais e raciais, temos um mundo de jovens com uma diversidade de gênero e raça, que entraram nas faculdades e hoje já estão atuando no mercado de trabalho. Médicos, engenheiros, advogados, jornalistas, artistas, professores, pesquisadores, entre outras profissões. E claro, os talentos que ganham mais visibilidade por estarem no campo das artes, do esporte, principalmente futebol e atletismo. E mais recentemente, vivenciamos um boom na área de gastronomia e empreendedorismo, que tem ampliado a rota cultural, criativa e econômica das comunidades.
Hoje vivenciamos a experiência inédita do primeiro Festival Literário de Favelas, que marca em 2019, a celebração do Dia da Favela. Como você vê a realização desta iniciativa?
Anderson Quack – Esse primeiro festival promovido pela Cufa é de fundamental importância para fortalecer, principalmente uma juventude criadora que está nas comunidades e precisa eclodir suas produções.
De alguma maneira sempre estivemos nesse cenário, podemos lembrar de Carolina Maria de Jesus e toda sua importância para a literatura nacional. E mais recentemente com os autores Paulo Lins e seu clássico sobre a Cidade de Deus. E o poeta Sergio Vaz com todo o movimento dos saraus nas comunidades com o poder de fomentar a cultura nesses espaços.
(Foto: Reprodução Redes Sociais)
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(*)CARDUME – Comunicação em Defesa de Direitos é uma rede que reúne organizações e movimentos da sociedade civil para ações articuladas de comunicação que potencializem a promoção e defesa de direitos e bens comuns.