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Agricultor urbano mobiliza recursos para fazer hortas a quem não pode pagar por uma

Por Geanderson Reis, da Cardume(*)

Uma horta não é apenas um local onde se cultivam verduras, legumes, grãos e ervas medicinais. Ao cultivarmos uma horta, além de experimentarmos o prazer de produzir o nosso próprio alimento, mantemos contato com a terra e com a natureza – fato que por si só já é benéfico para a saúde[1]. A horta pode se transformar em muitas coisas, proporcionando lazer, saúde física e mental, convívio, diálogo, educação ambiental. De quebra, ainda consegue contribuir para a segurança alimentar de famílias inteiras[2].

Essa é a certeza que mobiliza o hortelão Juarez Alves Martins, 58 anos, radicado em Brasília desde o início dos anos 1980. Filho de pequenos agricultores, ele trabalhou na roça “puxando enxada” até os 21 anos de idade, quando resolveu fazer um curso supletivo e foi parar em Brasília, onde continuou os estudos até se formar jornalista focado em meio ambiente e em políticas públicas de segurança alimentar e nutricional.

Juarez saiu da roça, mas a roça nunca saiu de dentro dele, como veremos na entrevista que fizemos com ele especialmente para a rede Cardume.

Como surgiu seu interesse por hortas?

Eu ainda era pequeno e já observava que meu pai e meus irmãos iam para a roça todos os dias onde plantavam e colhiam as coisas mais básicas da nossa alimentação, como o arroz, o feijão e o milho. Mas quase todas as misturas que faziam a comida ficar mais gostosa, como o tomate, a pimenta, o limão, mostarda, alface, berinjela, abobrinha, cheiro verde e muitas outras coisas eram produzidas na horta do quintal da casa mesmo, pela minha mãe, minhas irmãs e minha avó. Depois de passar a infância indo para a horta com minha mãe e minha avó, aprendi que é possível produzir comida mesmo em pequenos espaços. Plantei alguma coisa em todas as muitas casas em que morei depois que vim para a cidade. Eu fazia as minhas hortas, elas ficavam bonitas e produtivas, os amigos viam e me pediam ajuda para melhorar as hortas deles também. Como era muita gente interessada e não havia como atender a todo mundo, tive a ideia de criar uma espécie de “clube da horta” para organizar a demanda.

Como funcionava esse “clube da horta”?

Funcionava assim: a gente se reunia em um sábado e íamos todos fazer a horta de alguém do grupo ou de uma associação comunitária ou igreja. Fizermos horta até em acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), onde as pessoas resistiam à espera da terra em barracas de lona preta, muitas vezes passando necessidades. Nas experiências, os meus amigos aprendiam a cuidar de plantas de modo orgânico, se divertiam, nossa amizade era fortalecida e ainda fazíamos uma boa ação.

Foto: Divulgação

E o projeto “uma horta em cada porta”?

Com o aumento das demandas, criei o Uma horta em cada porta, que mobiliza pessoas e recursos financeiros para implantação de hortas em escolas e creches públicas e comunitárias, praças, terrenos baldios, postos de saúde, associações populares e em casas de pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional. No segundo semestre de 2018, uma amiga economista me ajudou a redigir um projeto que resultou em hortas e minhocários para as casas de 12 mulheres recicladoras de resíduos na Cidade Estrutural, até recentemente o maior lixão da América Latina[3]. A ideia inicial era apenas fazer hortas para melhorar a alimentação das famílias, mas o projeto acabou mobilizando outros voluntários e foram organizadas também oficinas práticas de confecção de minhocários, de economia solidária, de acesso aos programas de transferência de renda. Levamos até uma médica ginecologista à comunidade para orientar sobre saúde da mulher. E tudo isso começou com uma horta!

Tudo isso em torno de uma horta?

Em volta de uma horta pode-se falar, muitas vezes silenciosamente, de qualquer coisa. Pode-se falar da saúde trazida pela comida de verdade, das doenças e mortes causadas pelos agrotóxicos[4] e pelo latifúndio, pode-se falar da água, da terra, do direito à cidade e até de cultura da paz e da não-violência, porque quem aprende verdadeiramente a cuidar de uma planta, aprende também a respeitar os tempos, as limitações e as potencialidades da natureza e do outro.

Muitas reflexões…

Quem cuida direitinho de uma plantinha, também cuida melhor de si e do outro. E quem participa de uma experiência de horta escolar, comunitária ou mesmo doméstica, normalmente se engaja mais nos cuidados com a comunidade e com o meio ambiente. Isso me encanta, isso me emociona e me motiva.

E como foi fazer hortas na rua?

No ano passado, estudantes de Psicologia que trabalham com redução de danos entre pessoas em situação de rua na região central de Brasília me convidaram para uma conversa sobre a possibilidade de trabalharmos juntos, voluntariamente, na implantação de hortas comunitárias entre os prédios de escritórios do Setor Comercial Sul, aqui em Brasília. Topei na hora, e da parceria, surgiu o Coletivo Aroeira, que já fez brotar duas hortas e um pomar público para o livre cultivo e colheita de quem vive ou passa por aquelas ruas e becos, e os cuidados diários com as plantas são totalmente dados pelos próprios beneficiários.

Você também atua em escolas?

Sim, eu já orientei e ajudei a implantar hortas pedagógicas em escolas e creches de Ceilândia, Paranoá, Sobradinho 2 e na Fercal, todas comunidades periféricas de Brasília.

Foto: Divulgação

O governo dá algum apoio?

Por enquanto, não. No início eu tirava do meu bolso para financiar as hortas, mas a ideia tem chamado a atenção de empresas, e algumas escolas e organizações comunitárias já receberam apoio financeiro para a compra de insumos como adubos, sementes, mudas, ferramentas e terra para os canteiros. São empresas solidárias que também se encantam com a imagem de uma criança em contato com a terra, conhecem e confiam no potencial da experiência e generosamente destinam parte de seus recursos para apoiar o que estamos fazendo.

O que te motiva a fazer isso?

Acredito que estamos fazendo coisas certas, no plural mesmo, porque não sou eu sozinho. Muita gente me apoia e incentiva, como faz minha família. Outras pessoas, ou vão comigo ou ajudam doando uma ferramenta, um insumo importante, viabilizando um financiamento solidário. Penso que a expectativa do semear, a experiência do cuidado e a alegria da colheita promovem a nossa comunhão com a terra e conosco também. A horta já me ensinou duas coisas muito importantes. A primeira é que ela, a horta, é um espelho muito bacana. Se olho para a horta com humildade, enxergo que também faço parte da natureza e vejo que a minha vida possui fases, que cada uma dessas fases precisa ser vivida de verdade, com paciência e cuidados generosos. A segunda é que eu só preciso reconhecer no outro essas mesmas características e necessidades. Fazendo isso, serei uma pessoa melhor, mais humanizada, menos embrutecida e menos exigente.

[1] https://epocanegocios.globo.com/Vida/noticia/2017/06/estressado-por-que-natureza-ajuda-voce-relaxar.html

[2] https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/44445782/hortas-urbanas-para-seguranca-alimentar

[3] https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/lixao-da-estrutural-um-retrato-do-maior-deposito-de-lixo-da-america-latina.ghtml

[4] https://www.inca.gov.br/exposicao-no-trabalho-e-no-ambiente/agrotoxicos

(Foto: Divulgação)

(*)CARDUME – Comunicação em Defesa de Direitos é uma rede que reúne organizações e movimentos da sociedade civil para ações articuladas de comunicação que potencializem a promoção e defesa de direitos e bens comuns.

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