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Mulheres e pessoas negras são as mais impactadas; pesquisa do IBGE aponta que 70% dos ambulantes licenciados receberam auxílios relacionados à covid-19 em 2020, e mulheres foram 42% entre os beneficiários. Situação dos não registrados é mais preocupante

Por Lola Ferreira, Vitória Régia da Silva e Flávia Bozza Martins

Via: Genero e Número

Eu perdi tudo, até minha dignidade.” É assim que Tânia Ribeiro, de 62 anos, define o primeiro ano de pandemia para ela, sentimento que provavelmente é compartilhado pelos ambulantes em geral. Categoria pouco lembrada pelo Poder Público quando se fala em “trabalhadores”, eles sofreram um duro golpe com a restrição de movimentação nas grandes cidades e viram sua renda despencar, em muitos casos, até desaparecer. Tânia, por exemplo, só consegue comer porque o irmão doa uma cesta básica mensalmente. A falta de dignidade, narrada por ela, é exatamente depender de outras pessoas para o sustento básico.

Tânia é uma das milhares de mulheres que ganham a vida nas ruas do Rio de Janeiro, a cidade com maior número de ambulantes (9,14%) do país, segundo dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios, do IBGE. Na Lapa, bairro boêmio na região central da cidade, ela vende drinks e bebidas há 20 anos. Com o início da pandemia, não conseguiu mais sustentar a casa. Seu marido, parceiro de trabalho, caiu em depressão profunda ao ver as contas se acumulando.

“Nessa nova fase [de restrição] estamos piores, porque não tivemos tempo de recuperação. O tempo de trabalho foi muito curto, depois de oito meses parados, e com um horário de trabalho ruim. A nossa barraca leva duas horas para armar, mais duas para desarmar. Como eu vou vender tendo só duas horas de trabalho? A nossa venda é à noite. Os bares fecham e podem vender delivery a noite toda, mas a gente não tem como”, afirma.

Apesar da maioria dos ambulantes serem homens, as mulheres representam 42% da categoria, e 28% de todos os ambulantes são mulheres negras. A categoria, aliás, é composta majoritariamente por pessoas negras: 67% (somando homens e mulheres). Durante o primeiro ano de pandemia, são principalmente elas que mais têm sofrido com o impacto das restrições do isolamento social, associado à sobrecarga das tarefas domésticas, já que muitas contavam com uma rede de apoio (familiares, vizinhos, creches) no cuidado dos filhos e da casa para trabalhar fora. Uma pesquisa realizada pela Gênero e Número em parceria com a Sempreviva Organização Feminista (SOF) mostrou que metade das mulheres brasileiras passou a cuidar de alguém na pandemia, o que só evidencia o acúmulo de mais responsabilidade do cuidado por parte delas. 

Para Vanuzia Drummond, ambulante e mestranda de Justiça e Segurança na Universidade Federal Fluminense (UFF), que pesquisa as mulheres ambulantes em Niterói, os efeitos da pandemia nessa categoria têm recaído principalmente sobre grupos que já eram precarizados. “Tem sido devastador para a categoria, especialmente para os perde-ganha e para as mulheres. Porque são grupos que, por conta da pandemia, não têm de onde tirar seu sustento. Elas se veem em casa, com os filhos, que não estão na escola e sem rede de apoio. Elas tiveram que se reinventar nesse espaço já precarizado, mudar de área e acumular o ônus do sustento da casa”. 

Vanuzia Drummond é ambulante e mestranda de Justiça e Segurança na Universidade Federal Fluminense (UFF) | Foto: Arquivo pessoal e Ilustração: Victoria Sacagami

Ela começou a atuar na área para vender suas peças de costura. Inicialmente atuava como não licenciada, o que segundo ela era uma situação mais precarizada por ser atravessada por questões de segurança pública. Em 2014, tirou a licença para trabalhar como ambulante em Niterói. “Eu transito nos dois mundos. Trouxe para a universidade uma discussão já latente nesse espaço, mas sobre a perspectiva das ambulantes. As mulheres são atravessadas por questões de gênero, raça e segurança pública. Apesar de ainda não serem maioria da categoria, o que não é incluído é que, por exemplo, em barracas de ambulantes em que o ambulante licenciado é homem, a mulher trabalha como auxiliar, está na frente da barraca vendendo”. A mulher ainda fica muito subordinada e sobrecarregada”.

Ambulantes na pandemia de covid-19

Enquanto o Rio de Janeiro é o estado com mais vendedores de rua, Roraima é o que concentra o maior número de mulheres da categoria

vanuza

Em 2020, Tânia Ribeiro conseguiu o auxílio emergencial do governo federal. Dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios, do IBGE, apontam que 70% dos ambulantes receberam o benefício, e mulheres foram 42% entre os beneficiários. Porém, com as mudanças do auxílio em 2021, os valores foram reduzidos, agora variam de R$150 a R$350, e são insuficientes, segundo elas, para recompor a perda de renda da população.  

As pesquisas e análises comprovam essa insuficiência. Segundo estudo do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo (Made/USP), o auxílio emergencial em 2021 não trará a mesma proteção social contra a perda da renda que trouxe em 2020. Com a implementação desta versão reduzida do benefício, 5,4 milhões de brasileiros passam a viver em situação de pobreza, e 9,1 milhões, em extrema pobreza. O estudo ainda revela que a diminuição do auxílio aumenta os hiatos de gênero e raça, ocasionando maior vulnerabilidade econômica das mulheres negras.

“O ambulante também precisa de atenção. A mulher trabalhadora necessita de apoio e de um olhar especial”, destaca Pitty Almeida, ambulante de Salvador (BA), diretora da União Nacional de Trabalhadoras/es Camelôs, Ambulantes e Feirantes do Brasil (UNICAB), diretora do sindicato dos ambulantes do Estado da Bahia e presidente da Associação Baiana dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Mercado Informal. “Os ambulantes são vistos como marginais, somos discriminados o tempo inteiro e não temos apoio, sendo que nós também geramos a renda desse país, pagamos imposto em tudo que compramos e vendemos. A riqueza do país vem do trabalhador e da trabalhadora do mercado informal também”.

Tivemos uma queda de 80% nas vendas. Tive que buscar outros trabalhos para conseguir manter minha casa e as despesas da família, sendo que antes só o trabalho de ambulante já era suficiente. Temos que escolher entre comer ou pagar o aluguel na data

– Pitty Almeida, ambulante e diretora da Unicab

“Perde-ganha” X Licenciados

“Nossa luta é para que a prefeitura pague aos cadastrados, aos auxiliares e também para quem não se cadastrou, porque a falta de cadastro não é culpa do trabalhador”, afirma Maria de Lourdes do Carmo | Foto: Lola Ferreira e Ilustração: Victoria Sacagami

O ambulante “perde-ganha” é o trabalhador que não tem licença e cadastro na prefeitura, geralmente trabalha com mala ou lona no chão e, como o nome diz, pode correr o risco de perder ou ter sua mercadoria do dia apreendida pela ação das guardas municipais. Cada município do país tem suas próprias regras para o trabalhador obter a licença que permite seu trabalho como ambulante. Em São Paulo e  Salvador, por exemplo, é necessário o pagamento de uma taxa diária que varia de R$8 a R$11.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, em relação às taxas de formalização no comércio por segmento, a menor é a do comércio de ambulante e feiras (16,2%), seguida de comércio, manutenção e reparação de motocicletas, peças e acessórios (50,1%) e comércio de produtos alimentícios e bebidas (56,0%).

Nas cidades que oferecem auxílio específico para trabalhadores informais, entre eles os ambulantes, a falta de formalização dos trabalhadores pode significar o não recebimento do benefício. No Rio de Janeiro, até agora os únicos ambulantes aptos a receber o Auxílio Carioca (com valores entre R$ 200 e R$ 500) são os que trabalham nas praias e os artesãos das feiras de artes. Camelôs como Tânia, não. Em Salvador, é o mesmo cenário: o programa Salvador por Todos, da prefeitura de Salvador, que oferece R$270 para trabalhadores informais, é exclusivo para os licenciados.

Vanuzia Drummond alerta que o auxílio não é suficiente. “O ambulante está encolhendo entre pagar uma conta e comer ou comer e morar. Caiu drasticamente. Niterói tem estado em vantagem em relação aos colegas de algumas cidades, mas os R$500 que recebemos [da prefeitura] ainda não são suficientes. É uma ajuda, apesar de ser o básico para se alimentar”. 

Tem sido devastador para a categoria, especialmente para os perde-ganha e para as mulheres. Porque são grupos que, por conta da pandemia, não têm de onde tirar seu sustento. Elas se veem em casa, com os filhos, que não estão na escola e sem rede de apoio. Elas tiveram que se reinventar nesse espaço já precarizado, mudar de área e acumular o ônus do sustento da casa.

– Vanuzia Drummond, ambulante e mestranda de Justiça e Segurança na Universidade Federal Fluminense (UFF)

Maioria dos ambulantes depende de auxílio financeiro para sobreviver durante a pandemia

Categoria é formada majoritariamente por pessoas negras; são elas as que mais receberam benefícios em 2020

Perfil da categoria

Ambulantes que receberam auxílio relacionado à COVID-19

O Movimento Unido dos Camelôs (Muca) organizou em abril dois atos, o primeiro em frente à Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, reivindicando o pagamento do Auxílio Carioca para todos os ambulantes, sejam eles cadastrados ou não: “Nossa luta é para que a prefeitura pague aos cadastrados, aos auxiliares e também para quem não se cadastrou, porque a falta de cadastro não é culpa do trabalhador”, afirma Maria de Lourdes do Carmo, coordenadora do Muca. 

Ela explica que muitas mulheres foram prejudicadas pelo pagamento restrito aos ambulantes cadastrados. Em 2008, o prefeito César Maia definiu que para um trabalhador ambulante ser cadastrado no município deveria atender a um dos critérios definidos na lei 1876, de 1992. Os critérios eram: ser pessoa com deficiência, estar desempregado há mais de um ano, ser egresso do sistema penitenciário ou já trabalhar como ambulante na data daquela lei. Maria do Carmo lembra que em 1992 havia poucas mulheres nas ruas trabalhando como camelô e, por isso, ficaram fora do cadastro de 2008. Em 2017 houve alteração na lei em relação aos critérios, mas nenhum novo cadastro foi feito desde então.

De qualquer forma, o auxílio ainda não chegou para todos, nem mesmo para os cadastrados, como a soteropolitana Pitty Almeida, de 49 anos, que atua há 36 como ambulante e tem licença para trabalhar, mas não foi contemplada pelo benefício. Já sua companheira, que também é ambulante, foi. A justificativa da prefeitura, segundo ela, foi que são muitas pessoas para receber o benefício e faltam dados. “O cadastro da prefeitura seria uma forma de nos garantir os espaços e esses benefícios, mas na prática não funciona”, desabafa.

Devido às medidas de isolamento social, ela ficou 8 meses sem poder abrir sua banca no início da pandemia, e só foi reabri-la em outubro de 2020, com os cuidados possíveis. “Tivemos uma queda de 80% nas vendas. Tive que buscar outros trabalhos para conseguir manter minha casa e as despesas da família, sendo que antes só o trabalho de ambulante já era suficiente. Temos que escolher entre comer ou pagar o aluguel na data”.

cartaz

Os ambulantes cariocas voltaram às ruas na última segunda-feira (26). Nesta segunda manifestação, cobraram também o fim da política de tolerância zero para camelôs, que proíbe a presença de vendedores ambulantes no Centro do Rio. De acordo com a suspensão das medidas de restrição na capital fluminense, os serviços nas praias, incluindo ambulantes fixos e itinerantes, que estavam proibidos, passaram a ser autorizados até as 17h. Até o fechamento da matéria, a prefeitura não respondeu ao contato da reportagem sobre essas medidas. 

A falta de amparo à categoria não começou com o isolamento social, é histórica, mas se acentuou na pandemia. “O camelô sempre foi marginalizado, sofre com estigmas e conflito com o poder público, principalmente os perde-ganha, que convivem com o constante risco de apreensão da sua mercadoria, que é o que garante o seu sustento. A covid foi mais um fator de estresse na vida do ambulante, mas antes disso já sofria bastante. Essa categoria ainda é vista como um problema de segurança pública”, destaca a ambulante e mestranda da UFF Vanuzia Drummond.

Medo da fome

Embora vivam uma vida sem luxos e de muito trabalho, as ambulantes com as quais conversamos falam com  orgulho de sua atividade e ressaltam que, no geral, sempre conseguiram se sustentar desta forma. A pandemia, no entanto, virou tudo de cabeça para baixo. O jeito foi buscar alternativas e formar redes de apoio para ajudar os que ficaram ainda mais vulneráveis. Foi o que a coordenadora do Muca, Maria do Carmo, fez. Ela trabalha nas ruas há 26 anos e, ao ver muitos colegas passando fome, organizou uma grande campanha de doação. Arrecadou R$ 28 mil, que foram distribuídos para camelôs do Rio, mas criou um problema para si própria. Como o valor arrecadado foi para sua conta bancária, ela não conseguiu ser aprovada para receber o auxílio emergencial do governo federal.  

No último ano, Maria do Carmo, que é mãe de quatro filhos, teve de fazer escolhas difíceis para conseguir sustentar a casa. “Eu penduro todas as contas e só coloco a comida dentro de casa. Eu estou fazendo bico, fazendo faxina, correndo atrás. Meu marido não tem o salário dele, então a gente não paga as contas, só coloca comida no prato”, conta.

“Se virar” para comer também é realidade na casa de Maria da Guia, 56 anos, que trabalha há 30 como camelô. Na casa com a filha, o genro e dois netos, a trabalhadora da feira noturna de Copacabana não consegue sustentar a casa completamente. Apesar de ter conseguido o auxílio emergencial em 2020, ela explica que o valor é baixo, “ajuda, mas não dá para pagar comida, aluguel e as contas”. 

Em Niterói, quinta cidade mais populosa do estado do Rio de Janeiro, 90% dos ambulantes registraram queda no faturamento diário ao longo de agosto de 2020, primeiro mês de reabertura após os fechamentos provocados pela pandemia. Os  trabalhadores ambulantes idosos, com mais de 65 anos, registraram a maior perda, 61%. Os dados são da pesquisa “Impactos da pandemia da Covid-19 – Retomada do Comércio ambulante em Niterói”, fruto de uma parceria entre a Associação dos Ambulantes (Acanit) e pesquisadores da Universidade Federal Fluminense do projeto UFF nas Ruas – Extensão Universitária e Assessoria Popular.

Pitty Almeida é ambulante em Salvador e, apesar de ser licenciada, não conseguiu receber auxílio da prefeitura | Foto: Arquivo Pessoal e Ilustração: Victoria Sacagami

O auxílio só foi destinado a determinada parte da categoria. No primeiro momento nem os licenciados seriam agraciados, mas lutamos para conseguir. Ainda assim, o número de ‘perde-ganha’ é alto e, por isso, temos uma quantidade imensa de trabalhadores e trabalhadoras que não têm acesso a esses benefícios. É uma categoria que traz receita para as cidades e fica à margem das políticas públicas

– Vanuzia Drummond, ambulante e mestranda de Justiça e Segurança da Universidade Federal Fluminense (UFF)

Para a pesquisa foram ouvidos 253 comerciantes ambulantes, entre 24 e 29 de agosto, semana que marcou um mês da reabertura do comércio. Estima-se que 944 pessoas sobrevivem diretamente do comércio ambulante na cidade. A movimentação diária de R$ 81 mil caiu para R$ 37 mil depois do início da pandemia.

Vanuzia Drummond também é extensionista do projeto UFF nas Ruas, que além de produzir pesquisas, organiza campanhas de arrecadação de alimentos para a categoria. A pandemia, segundo ela, tornou ainda mais urgente uma discussão que as cidades parecem evitar: a necessidade de se pensar políticas públicas para os ambulantes. “Temos atuado para mitigar esse sofrimento através de campanhas de doações de alimentos, mas sabemos que não é suficiente. O auxílio só foi destinado a determinada parte da categoria. No primeiro momento nem os licenciados seriam agraciados, mas lutamos para conseguir. Ainda assim, o número de ‘perde-ganha’ é alto e, por isso, temos uma quantidade imensa de trabalhadores e trabalhadoras que não têm acesso a esses benefícios. É uma categoria que traz receita para as cidades e fica à margem das políticas públicas”. 

*Lola Ferreira e Vitória Régia da Silva são repórteres e Flávia Bozza Martins é analista de dados da Gênero e Número

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