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Projeto de lei que permite que empresas comprem imunizantes, encaminhado ao Senado, cria grande cisão entre pobres e ricos, empregados e desempregados, homens e mulheres, brancos e negros — e contribui com o desmonte do SUS

Por CFEMEA, na coluna Baderna Feminista | Ilustração: Stephanie Pollo

O Brasil ultrapassou a trágica e desesperadora marca de 353 mil vidas perdidas para a covid-19. No dia 6 de abril, o país alcançou o recorde em número de mortes no período de 24 horas, foram 4.195 vidas ceifadas.

Mortes evitáveis se houvesse a intencionalidade de prevenir, coibir e tratar as vítimas da covid. Nos somamos à crítica da jurista Deisy Ventura ao afirmar que a intencionalidade do governo Bolsonaro é justamente outra: a de combater a saúde pública! É pouco acusar seu governo de assumir uma política que não funcionou no combate à pandemia no Brasil.

A intencionalidade pode ser percebida pela disseminação sem fim de desinformação sobre a doença e pelo negacionismo, como também pela atuação de inviabilizar as medidas de combate de outros poderes: seja na guerra estabelecida contra governadores de estados que tentam atuar para coibir a propagação do vírus, seja pela via legislativa. Sobre essa última, tivemos exemplos óbvios nos debates no Parlamento nas últimas semanas, tanto pela esmola aprovada como apoio às famílias empobrecidas do auxílio emergencial de R$ 150 (proposta do governo), quanto na proposta de como privilegiados se confundem com portadores de direito na votação na Câmara Federal do projeto de lei conhecido como Fura Fila. Nas palavras da relatora da proposta, Celina Leão, favorecer o empresariado no acesso às vacinas não se trata de furar a fila mas apenas “de criar uma segunda fila”… qual seria mesmo a diferença?

O Governo segue, sistematicamente, com a política de destruição do sistema de saúde ao negar a gravidade do fato, impedir acesso a medicamentos e vacinas, equipamentos e investimento à saúde pública e ainda legislar para oferecer privilégios para alguns. Essa política destrói direitos sociais, precariza ainda mais grupos populacionais específicos que estão sofrendo com a situação da pandemia no Brasil – classe trabalhadora pauperizada, indígenas, quilombolas, população negra, as mulheres e jovens da periferia. Eis uma política genocida que atua para dizimar um contingente populacional, a favor de manter os privilégios da elite econômica branca e masculina brasileira.

Diante do absurdo em que vivemos, o Congresso Nacional, ao invés de concentrar seus esforços para conseguir vacinas para toda a população brasileira, perde tempo precioso com propostas como o projeto de lei Fura Fila, o PL 948/2021, que autoriza a iniciativa privada a comprar vacinas de covid-19 para “os seus” sem fazer o repasse de doses ao Sistema Único de Saúde (SUS). Importante lembrar que o PL foi votado na Câmara no dia 6 de abril, dia de recordes de mortes. A proposta foi aprovada por 317 votos a favor do texto, 120 contrários, e duas abstenções. Agora o PL segue para votação no Senado Federal. Neste mesmo dia, a categoria das trabalhadoras domésticas – composta em sua ampla maioria por mulheres negras — pedia para que fossem incluídas como grupo prioritário no acesso à vacina, pois a mesma elite que confunde privilégio com direitos, segue exigindo que estas trabalhadoras sigam se arriscando indo trabalhar em suas casas, sem sequer as considerar que estas mulheres são dignas de acessar a vacina. E assim, vamos reafirmando o Brasil escravocrata, machista e antipovo que construímos.

Diante de tantos fatos absurdos, o CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria entrevistou militantes dos movimentos de mulheres negras, de direitos humanos e feministas para tecerem comentários acerca do PL Fura Fila e suas consequências para o aumento das desigualdades raciais, de gênero e sociais.

Para José Antônio Moroni, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma Política, o PL Fura Fila é um fotografia de como a nossa institucionalidade trata a questão não apenas da covid, mas como todas as questões referentes ao Estado brasileiro. “Nós não temos um Estado público, temos um Estado privado que atende a interesses privados, que são os interesses das nossas elites, que estão não topo da pirâmide”, aponta.

O Brasil caminha na contramão de medidas adotadas por outros países. “Mesmo aqueles países que não têm um sistema universal de saúde como o SUS, fornecem e garantem a vacinação de forma gratuita e pública e não liberaram a compra de vacinas pelo setor privado sem antes vacinar a população, existe essa consciência internacional. Por que então o nosso Parlamento vota essa Lei? Primeiro porque eles acham que os privilégios que eles têm são Direitos. Para eles, mesmo nessa situação de pandemia, quem tem dinheiro compra vacina e quem não tem dinheiro não compra, é assim que a nossa elite, é assim que a nossa institucionalidade funciona. Eles não têm essa dimensão do público, do bem comum, então numa situação de pandemia eles querem garantir a vacina para os seus”, reforça Moroni.

Com a saúde em colapso em vários estados, filas de espera nas UTI’s, o conto do vigário deste PL é a justificativa de que com a aprovação do PL Fura Fila, o Sistema Único de Saúde (SUS) será desafogado e assim, a população será também beneficiada. Será mesmo? Quais o interesses do empresariado brasileiro em comprar vacinas, inclusive que não necessitariam de aprovação da Anvisa? Quais os efeitos dessa medida na vida da população mais vulnerável? Se o empresariado brasileiro está de um lado, neste caso fervorosamente em lobby pela aprovação da compra privada de vacinas, obviamente não é a classe trabalhadora que será beneficiada com isso, ainda mais se olharmos os recortes de gênero e raça da sociedade brasileira.

O Observatório Direitos Humanos Crise e Covid-19 apresentou um levantamento sobre o Plano de Vacinação nos Estados e nas Capitais do Brasil que em relação ao plano de vacinação existe em âmbito federal uma “descoordenação das políticas e o estrutural déficit de informações como vem assinalando os vários estudos já realizados desde o início da pandemia”. Não existe um alinhamento entre o Plano Nacional e os planos estaduais e municipais. Sem a intenção e atuação do Governo Federal no combate à covid, a maioria dos estados foram obrigados a elaborar seus próprios planos de vacinação e também de medidas para contenção do vírus, eis um bom retrato de cada um por si. De acordo com o Levantamento, essa característica prejudica o planejamento da atenção em saúde e ainda “ofende o direito à informação da população brasileira que desconhece metas, prazos, estratégias e diretrizes integradas para a oferta de vacina para todos os segmentos e grupos populacionais”. O Levantamento do Observatório é uma amostra de que não existe intenção do governo federal em cuidar da saúde do povo brasileiro, o que abre brechas para as intensas justificativas de aprovação do PL Fura Fila.

Na contramão da intenção do Congresso Nacional, mais de 200 organizações da sociedade civil, entre elas o CFEMEA, lançaram o Manifesto “Abaixo o projeto de lei fura-fila da vacina: por uma vacinação para todas e todos pelo Sistema Único de Saúde”. O documento é uma denúncia sobre os efeitos da aprovação deste PL na saúde da população. “Na prática, esta proposta implica que empresários poderão ser vacinados antes do cumprimento do calendário de vacinação dos grupos populacionais que apresentam maior risco de infecção e que são, portanto, prioritários; que não estarão obrigados a doar as vacinas compradas para o Sistema Único de Saúde; e que nós, sociedade como um todo, pagaremos por esse privilégio, uma vez que Arthur Lira e o empresariado pretendem fazer com que a compra seja descontada de seus impostos devidos”, destaca trecho do Manifesto, que reforça a necessidade de que todo o processo de vacinação seja coordenado pelo SUS, com a vacinação de grupos prioritários e, em seguida, de toda a população, de forma lógica, organizada, responsável e justa.

Nesse contexto de pandemia a luta em defesa do SUS ficou ainda mais urgente. Com a aprovação do PL Fura Fila é certo o enfraquecimento do SUS, assim como o comprometimento do acesso e distribuição da vacina de forma igualitária.

A defesa do SUS e do que ele significa para o povo brasileiro é inquestionável

“O SUS é um patrimônio do povo brasileiro e o equipamento da proteção social responsável pela saúde publica, universal e gratuita. Nasceu para democratizar o acesso da população brasileira, principalmente pobre, negra e periférica à saúde. O SUS já vinha num rápido processo de desmonte desde o golpe de 2016, com o mercado cada dia mais mostrando suas garras e incidindo diretamente sobre um projeto de privatização. Mas veio a pandemia e ele se tornou o ator principal nesse contexto. A defesa do SUS e do que ele significa para o povo brasileiro é inquestionável. Agora, os empresários dirigem a força do capital para privatizar a saúde, tentando dar uma rasteira na população brasileira. Sabemos que não há vacina para todas, todos e todes nesse momento, existe uma dificuldade real de acesso aos insumos necessários. Ao propor a compra de vacinas pela iniciativa privada, formando filas paralelas e reforçando os privilégios e as desigualdades, violam o critério do acesso universal, da saúde como dever do Estado sem discriminação de qualquer tipo, inclusive de classe e raça. Aprovar a compra da vacina pela iniciativa privada, aplicá-la sem critérios equânimes, seria mais um crime contra a vida praticado por esse governo, a quem não interessa a vida da classe trabalhadora e das mulheres como grande força que sustentam esse país” destaca Liliane Brum, da coordenação da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) e da equipe da Redeh – Rede de Desenvolvimento Humano.

As articulações do Poder Executivo e Legislativo, e com apoio do Judiciário, em torno da aprovação do PL Fura Fila escancara, mais uma vez, o descaso do governo Bolsonaro em relação à pandemia, que afeta sobretudo a população negra do país, historicamente, a população mais pobre e com menos acessos a direitos.

Para Lúcia Xavier, coordenadora da Criola, organização de mulheres negras e que integra a Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) e a Coalização Negra por Direitos, a aprovação do PL Fura Fila abre uma possibilidade de um grupo da sociedade ter direito ao acesso a vacina antes dos mais vulneráveis e revela o fosso entre os grupos sociais no país e a dimensão necropolítica do governo federal, que abre mão da sua responsabilidade em distribuir a vacina para toda a população.

“O fato de terem mais recursos e poderem acessar mais rapidamente a vacina significa deixar de considerar que a sociedade brasileira como um todo passa por um forte impacto de uma pandemia desconhecida, com pouco acesso a recursos e sobretudo com o governo negacionista que não se preparou para enfrentar a pandemia desde o momento em que se foi anunciado a possibilidade da compra da vacina. Olhando o PL de um modo geral e a política de vacinação, é preciso levar em consideração que se as empresas se juntassem ao governo para ampliar a nossa capacidade de vacinar, de ter mais acesso a insumos, de investir em laboratórios públicos, que já estão em andamento, como a Fiocruz e Butantã, essas seriam medidas não só éticas, mas cívicas que essas empresas tomariam. Agora, o PL só reforça o fosso entre os grupos sociais no Brasil, só revela que esse governo só governa para ricos, para a elite, para quem está no poder”, reforça Lúcia Xavier.

Com a aprovação do PL, o SUS não será capaz de cumprir com plano de imunizar a população

Para Athayde Mota, da diretoria executiva da Associação Brasileira de Ongs (ABONG), além do enfraquecimento do SUS, a aprovação do PL Fura Fila vai aprofundar as desigualdades no país. “Vai criar um fosso enorme não só entre ricos e pobres, mas entre pessoas com carteira assinada e sem carteira assinada, entre homens e mulheres, entre negros e brancos, entre indígenas e brancos, as desigualdades do Brasil que já são enormes vão certamente ser aprofundadas e a maior delas vai ser em relação ao mercado de trabalho. Quem vai dar vacina para o cara que é ambulante, para a mulher que trabalha vendendo legumes na rua? Quem vai quem vai dar cobertura a essa população que não tem patrão, que não tem carteira assinada? Não deveria haver essa distinção, o cidadão, a cidadã devem ter acesso igual a vacina e é para isso que o SUS existe e se o SUS não puder fazer isso ninguém vai fazer”.

Direitos Humanos

Lançado no dia 7 de abril – Dia Mundial da Saúde, o Informe 2020/21 da Anistia Internacional: O estado dos Direitos Humanos no Mundo documenta como as mulheres, as trabalhadoras e os trabalhadores da saúde estiveram desprotegidos, assim como os povos indígenas, a população negra e quilombola, e outros grupos historicamente discriminados pela sociedade e negligenciados pelos governos vêm arcando com o peso maior da pandemia, enquanto alguns líderes fizeram uso político da crise e intensificaram seus ataques aos direitos humanos.

“É urgente uma mudança de rumo no enfrentamento da covid-19, no Brasil. É obrigação do poder Executivo, governos federal, estaduais e municipais atuar em cooperação. O primeiro passo é priorizar as necessidades daqueles que foram deixados para trás por décadas de abandono e políticas excludentes e garantir seu acesso às vacinas contra a covid-19. O poder público precisa garantir vacina para todos, de forma gratuita. Vacinação não é privilégio, é direito. O Sistema Único de Saúde tem sido referência na região das Américas de como é possível aplicar a universalidade na prestação de saúde. Durante todos esses anos, mesmo tendo seus recursos drenados de maneira incessante, inclusive a partir da Emenda Constitucional 95, que em 2016 congelou os investimentos em saúde e educação, o SUS seguiu prestando assistência a todas as pessoas no Brasil. O Informe aponta a negligência das autoridades públicas, e a Anistia Internacional exige que o direito à vida seja garantido por meio da imunização”, explica Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil.

Inerte e negacionista para o povo…

Outros dados que reforçam como a ausência de uma política séria de combate à covid-19 agrava as desigualdades no país, estão apresentadas no Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar, com apoio do Instituto Ibirapitanga e parceria de ActionAid Brasil, FES-Brasil e Oxfam Brasil.

A pesquisa revela que a fome já é uma realidade para milhões de brasileiros. Realizada nos últimos três meses de 2020, o Inquérito aponta que mais de 19 milhões de pessoas estavam passando fome no Brasil e cerca de 116 milhões de pessoas não tinham acesso pleno e permanente a alimentos.

O Inquérito também mostra que a escalada de fome no Brasil tem gênero, raça e grau de escolaridade. “Domicílios chefiados por mulheres, habitados por pessoas pretas e pardas e com baixa escolaridade são as que mais sofrem com a fome no país. Segundo a pesquisa, essas condições afetam negativamente a situação de segurança alimentar das pessoas: 11,1% dos lares chefiados por mulheres estavam enfrentando a fome; 10,7% dos lares chefiados por pessoa preta ou parda estavam enfrentando a fome; 14,7% dos lares chefiados por pessoa com baixa escolaridade estavam enfrentando a fome”.

…positivo e festivo para os empresários

Paralelo ao cenário de aumento da pobreza, dos dados alarmantes da fome e das mortes por covid-19 e no reflexo mais nítido dos interesses e conluios por trás do PL Fura Fila, o Presidente deste país se reuniu com um grupo de empresários no dia 7 de abril, em um jantar oferecido por Washington Cinel, dono da Gocil Serviços de Vigilância e Segurança Ltda. O tema da noite: vacinação. Importante destacar que nesse jantar, Bolsonaro estava acompanhado dos ministros Paulo Guedes (Economia), Fábio Faria (Comunicação), Tarcísio de Freitas (Infraestrutura) e Marcelo Queiroga (Saúde). Ficou até uma matemática simples.

“O fura fila agrava ainda mais as desigualdades e racismo existente no Brasil. Há de ressaltar que hoje em um país de maioria negra a vacina tem sido destinada em dobro para a população branca. Temos um já gigante desafio de fazer com que a vacinação pelo SUS seja conferida a população que hoje está em maior risco de contágio e complicações pelo coronavírus – negros, quilombolas, pessoas em situação de rua, trabalhadores dos serviços essenciais, pessoas em situação de privação de liberdade. Se permitirmos que uma elite que detém o privilégio de estar em isolamento, de ser já ser atendido a qualquer momento por uma equipe de saúde, cortem a fila da vacinação de quem realmente precisa e não tem outra opção, iremos agravar ainda mais a desigualdade social econômica e sanitária que vive a sociedade brasileira”, destaca Sheila de Carvalho, membro da Coalizão Negra por Direitos.

Nos próximos dias, o Congresso Nacional, seguirá a votação do PL Fura Fila e também da proposta para garantir acesso às categorias profissionais mais vulnerabilizadas no contexto da pandemia. Os movimentos sociais e organizações da sociedade civil seguirão na insistência e resistência de barrar propostas que atentam contra os direitos da população brasileira, bem como de alertar para as escolhas privilegiadas que os poderes públicos no Brasil seguem favorecendo. Quem sabe assim, ajudamos a engrossar o caldo para desgastar este governo arcaico, fundamentalista, conservador e elitista – cujos representantes se espalham pelos demais poderes públicos no País – e então contribuir para estabelecer outros parâmetros para a existência de uma sociedade justa, igualitária, livre, com os direitos humanos respeitados e garantidos!

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