Em tempos de governo liderado por um ex-sindicalista e por uma ex-militante contra a ditadura militar, o Brasil vive um momento de reorganização dos movimentos sociais de esquerda nos últimos anos. Novas iniciativas surgem, outras perdem força; algumas delas se adaptam ao atual contexto político. Entre os mais jovens (mas não somente), o Levante Popular da Juventudevem ecoando novos espaços de formação política e ação propositiva de caminhos ideológicos para o país.
A proposta é reunir o movimento estudantil, as lutas populares do campo, povos indígenas e quilombolas, direitos da diversidade sexual e todas as demais minorias que, hoje, somam forças nas cinco regiões brasileiras, no que se costuma considerar política de esquerda. Em entrevista exclusiva à Adital, Thiago Wender Ferreira, também chamado Thiago Pará, membro do Levante, debate como o movimento se articula e aponta algumas das bases das discussões.
Diretor de Políticas Educacionais da União Nacional dos Estudantes (UNE), Thiago explica que o movimento pretende construir um Projeto Popular para o Brasil, que transforme a sociedade brasileira em direção a alternativas de esquerda, bandeiras capazes de desbancarem núcleos de poder das elites historicamente dominantes no país. Reforma Agrária, Reforma Universitária, Reforma Urbana e Reforma Tributária — há muitos anos levantadas pelas esquerdas, mas, reiteradamente, barradas pelas políticas institucionais — são algumas delas.
ADITAL – Como começou o Levante Popular da Juventude?
Thiago Pará -O Levante Popular da Juventude surge de profundas reflexões de uma parcela da esquerda brasileira, aquela identificada com o Projeto Popular para o Brasil, ou seja, os movimentos sociais populares como MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], MAB [Movimento dos Atingidos por Barragens], MPA [Movimento dos Pequenos Agricultores], MTD [Movimento dos Trabalhadores Desempregados] e a Consulta Popular.
Essas reflexões apontavam que estávamos vivendo no Brasil um momento muito importante, em que a parcela da juventude na sociedade era (e ainda é) gigante. Ao mesmo tempo, não havia organização que conseguisse chegar até esses jovens — em geral, vivendo nas grandes cidades, em periferias, com empregos precários e educação de baixa qualidade, ou seja, ingredientes para lutas sociais.
Essa juventude, ao contrário, vinha e vem sendo sistematicamente disputada pela direita e pelo conservadorismo. Sob a nuvem do neoliberalismo, a nossa juventude pobre vem sendo “organizada” pelo tráfico, pelas ONG’s [organizações não governamentais], pelas igrejas neopentecostais, quando não são vítimas da deliberada política de extermínio, conduzida pelas polícias militares, resquício da ditadura [do regime militar e civil no Brasil de 1964 a 1985].
É a partir daí que jovens no [Estado do] Rio Grande do Sul, irão organizar as primeiras experiências do que viria a ser o Levante. Construindo as células de base nas universidades, escolas, periferias e no campo, como forma de unir a juventude brasileira, numa mesma organização para debater seus problemas e desafios.
ADITAL – O Levante organizou um primeiro Acampamento da Juventude, do qual 1 mil pessoas participaram. O segundo acampamento reuniu 3,2 mil pessoas. Como está, hoje, a articulação do movimento?
TP – O primeiro acampamento foi, na verdade, o primeiro passo que demos para nacionalizar oLevante. Naquela ocasião, fevereiro de 2012, em Santa Cruz/Rio Grande do Sul, reunimos 1.200 jovens de 17 estados da Federação. Eram jovens camponeses, estudantes e trabalhadores. Muitos ainda não conheciam o Levante e ali estavam para conhecer aquela iniciativa que vinha surgindo. Foi o momento de conhecer e afirmar o Levante Popular da Juventude enquanto ferramenta da esquerda na organização da juventude da classe trabalhadora, com o objetivo de construir, no Brasil, um projeto popular.
O II Acampamento Nacional, que ocorreu em abril deste ano, em São Paulo, revelou, entre outras coisas, o acerto na construção dessa organização. Foram 3.200 jovens, de 24 estados do Brasil mais o DF [Distrito Federal] e delegações de outros tantos países da América Latina. Mas revelou, ao mesmo tempo, uma organização mais enraizada e ligada ao povo brasileiro. Os compromissos assumidos com o combate ao racismo, ao machismo e à homofobia são expressões do protagonismo das mulheres, negros e negras e da juventude LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros].
Foi a sintonia com os movimentos de junho de 2013 [Jornadas de Junho, manifestações populares em todo o país que, inicialmente, surgiram para contestar os aumentos nas tarifas de transporte público] que nos fez assumir como prioridade a pauta do Plebiscito Popular por uma Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político. É uma campanha que, hoje, ultrapassa mais de 400 organizações sociais entre sindicatos, movimentos e partidos. Já são mais de 1.500 comitês em todo o Brasil. É, portanto, em torno dessa Campanha, que o nosso movimento, hoje, vem se articulando.
ADITAL – Qual o nível de politização do movimento no início de sua articulação? E hoje?
TP – As ideias que predominam na sociedade são as ideias das classes dominantes, das elites. Por isso, não é fácil organizar a juventude, que é bombardeada, cotidianamente, pela mídia, religião, escolas etc. Podemos dizer que no Levante encontramos uma “escola de solidariedade”. É preciso recuperar valores e combater vícios. O neoliberalismo foi, para a nossa geração, uma catástrofe a esse respeito. Isso é o que acumulamos nesse período.
Nesse sentido a avaliação é muito positiva. Enquanto organização, estamos avançando coletivamente na construção de um projeto que esteja sintonizado com a vida dos/as jovens brasileiros/as. Quando afirmamos o combate às opressões, o fim dessa política de genocídio do povo negro, quando reivindicamos outra forma de fazer política, através da participação popular, de forma soberana e autônoma, quando fazemos tudo isso, dando centralidade aos debates em célula, com o todo da organização, é uma forma de combater a cultura neoliberal e cultivar valores coletivos, de solidariedade, de fidelidade e amor ao povo, de entrega e disciplina. Podemos dizer, portanto, que a organização, as lutas e a formação política que estimulamos e praticamos noLevantecontribuem para a elevação da consciência dos jovens engajados.
ADITAL – Que juventudes participam do movimento?
TP – Desde o início, procuramos organizar os segmentos da juventude brasileira que sofrem com nossa sociedade injusta e, ao mesmo tempo, aquelas parcelas que têm disposição para transformar a sociedade. São jovens estudantes de escolas, cursinhos e institutos técnicos, que veem suas possibilidades de ingressar no ensino superior de qualidade reduzidas; jovens universitários, que procuram uma formação profissional mais crítica e que procuram debater e transformar a educação brasileira; jovens camponeses, que veem suas escolas serem fechadas e as condições de cultivar a terra serem ceifadas pelo agronegócio; são jovens das periferias, que não podem se expressar através do funk, do hip hop, da capoeira etc., que são humilhados e assassinados pela Polícia Militar. Mulheres, negros e negras, gays, lésbicas, travestis, indígenas, quilombolas etc., que procuram espaço e condição para afirmar suas identidades.
ADITAL – Desde então, quais avanços foram alcançados?
TP – A primeira pauta a que o Levante se lançou foi da Verdade, Memória e Justiça. Foram dois os propósitos que nos levaram a assumirmos essa bandeira em nossa fase inicial. O primeiro foi que queríamos lançar nossa organização na ação. Mais que um manifesto, uma carta de princípios, era preciso comunicar através da ação para a juventude brasileira, mostrar que é possível através da organização, atuarmos na transformação direta da sociedade. Inspirados na afirmação de Carlos Marighella de que a “ação faz a organização”, nos desafiamos a construir escrachos, que eram formas de denunciar os agentes da tortura ainda impunes.
E fizemos isso no contexto da disputa pela instalação da Comissão Nacional da Verdade. Sabemos que nossa atuação foi importante para quebrar a latência de outros setores e contribuir na luta das várias organizações que já vinham, há muito, pautando o tema. O segundo propósito era o de se apegar a um determinado leito histórico da esquerda brasileira, de reivindicar a memória de nossos e nossas mártires, de identificar nos problemas atuais raízes ainda vinda deste tempo.
De lá para cá, temos pautado com centralidade a utilização de agitaçãoe propaganda na ação da esquerda juvenil, formas outras de dialogar e aproximar os jovens das organizações. O resgate da cultura brasileira como arma na luta de classes e no embate com o conservadorismo e com as elites.
Temos também sistematizado um Projeto popular para a educação, que garanta passe-livre para toda a juventude, uma política de implantação de cursinhos populares, mais cotas raciais e sociais nas universidades, estímulo governamental à produção e acesso à cultura, o direito a creche para as mulheres poderem estudar e trabalhar, mais investimentos em educação pública, entre outros, e o reivindicamos na forma de Jornada de Lutas.
Travamos a luta pela democratização da mídia e escrachamos, em várias cidades, a Rede Globo e suas afiliadas. Mais recentemente, construímos com diversas entidades a II Marcha Internacional contra o Genocídio do Povo Negro, que foi organizada em diversas capitais e mobilizou cerca de 50 mil ativistas em todas essas manifestações.
ADITAL – Como vocês veem a cobertura dos movimentos sociais nos meios de comunicação?
TP – Os meios de comunicação utilizam-se de duas táticas; quando uma falha, acionam a outra. A primeira é a tática da omissão, em que a mídia procura esconder o que os movimentos sociais vêm fazendo, sejam ações sem ou com enfrentamento; tentam jogar para o ostracismo, ignorar, fingir que não existe, ou seja, desinformar, deixar o telespectador sem qualquer referência de organização social que luta por seus direitos e pelo dos demais. Mas, quando essa tática não dá certo e as ações furam o bloqueio midiático, quase sempre com a ajuda da combativa mídia independente, a grande mídia se vale de sua outra tática, a da manipulação, ou seja, apresenta os fatos de forma imparcial ou mesmo invertendo a lógica.
Em geral, não dão espaço para as direções se pronunciarem, colocam “especialistas” imparciais e apresentam os fatos com a “linguagem adequada”. Em vez de utilizarem a palavra ocupação, usam invasão, para manifestantes usam depredadores ou terroristas etc. É por isso que a luta pela democratização dos meios de comunicação, com regulação econômica, quebra do monopólio e garantia de participação popular é necessária e urgente.
ADITAL – Existe um projeto popular para o Brasil? Quais seriam os pontos-chave?
TP – Chamamos de Projeto Popular para o Brasil o conjunto de reformas estruturais que serão capazes de engajar a maioria da sociedade na luta pela transformação econômica e social do Brasil. Em diversos momentos o povo brasileiro e as organizações de esquerda lograram construir unidade na luta e fortalecimento de base, isso permitiu que colocássemos em disputa um projeto de esquerda contra as forças dominantes. No inicio da década de 1960, tínhamos as Reformas de Base, que era o projeto da classe trabalhadora. Na década de 1980, vimos um conjunto de organizações populares e sindicais pautarem a construção do Projeto Democrático e Popular, sintetizado no interior dos debates no PT [Partido dos Trabalhadores]. São projetos que orientam a sociedade para alternativas de esquerda, permitem acumularmos força em momentos de descenso das lutas de massa e, ao mesmo tempo, alterar a correlação de forças nos momentos em que a luta política torna-se central no cotidiano das pessoas.
Hoje, é preciso construir e fortalecer o Projeto Popular para o Brasil, como forma de orientar as organizações populares na luta democrática e nacional. Os pontos-chave desse projeto são, justamente, as bandeiras capazes de colocarem em xeque os núcleos de poder das elites dominantes.
A concentração da terra com uso intensivo de agrotóxicos é a força do agronegócio; por isso, lutamos pela Reforma Agrária Popular defendida pelo MST. As universidades particulares, que proliferam sem qualquer regulamentação ou garantia de qualidade no ensino, é onde reside a força das grandes empresas nacionais e multinacionais do setor de educação e parcela do capital financeiro; por isso a luta por uma Reforma Universitária encabeçada pela UNE. Entre outras, como a Reforma Urbana, que garanta moradia digna para os/as trabalhadores/as frente aos interesses das empreiteiras; a Reforma Tributária, que cobre mais impostos de quem tem dinheiro e desonere o bolso do trabalhador e da trabalhadora etc.
Essas são as bandeiras que defendemos e que conformam o Projeto Popular. Veja que são, ao mesmo tempo, instrumentos de mobilização, pois dialogam com o cotidiano da população, com suas demandas mais presentes; sendo, portanto, caminho para o debate e a construção de sociedades de outro tipo.
ADITAL – Às vezes, vocês usam o termo “socialismo”. O que vocês entendem por socialismo?
TP – É a organização da sociedade em bases igualitárias e justas, com planejamento da economia e garantia de desenvolvimento pleno da sociedade, com a busca incessante de sua emancipação. Já tivemos diversas experiências de construção socialista, umas mais outras menos exitosas, mas todas foram essenciais para romper com o paradigma capitalista e colocar no horizonte uma alternativa possível e viável.
As experiências russa, chinesa, vietnamita, cubana, nicaraguense etc., todas dão uma contribuição importante para pensarmos em quais bases queremos construir nossa sociedade. Ao mesmo tempo, é hoje um tema distante da sociedade, muitas vezes até temido, por conta da vasta propaganda antissocialista produzida do pós-Grande Guerra até os dias de hoje.
Acreditamos que nossa tarefa central, hoje, seja organizar a juventude e construir um Projeto Popular. Este projeto obviamente enfrentará a oposição das elites; e, quando vitorioso, apontará para a construção de uma sociedade socialista.
ADITAL – Como vocês percebem a aceitação das massas com relação aos recentes protestos de rua e demais manifestações de resistência popular?
TP – Em geral, há uma boa aceitação por parte da população, com exceção das manifestações que acabem em confrontos e depredações. É importante colocar aqui o quanto a mídia corporativa trata as manifestações de todos os tipos de forma negativa. Procura, em todo momento, criar na população um sentimento antimanifestação, antiprotesto.
Sempre entrevistam a senhora que trabalha de doméstica e que chegará em casa lá pelas 2 horas da madrugada porque os metroviários ou rodoviários estão em greve, e por aí vai. As questões centrais das greves, manifestações e atos são relegadas ao esquecimento, despolitizando dessa forma a ação política coletiva. Em todo caso, a aceitação é sempre muito positiva, mas, quando as manifestações não apresentam coerência com os problemas do cotidiano da população, acabam sendo rechaçadas pelo próprio povo.
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