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União obtém na Justiça Federal a reintegração de posse de edifício ocupado por trabalhadores sem-teto e joga 500 homens, mulheres, crianças e idosos para viver no relento

Passava das 6h30, a temperatura em São Paulo caía para os 12ºC, quando os oficiais da Justiça Federal bateram no portão de ferro do edifício de número 380, na rua José Bonifácio, centro de São Paulo, ocupado pela Frente de Luta pela Moradia desde o dia 12 de abril.

Em 74 dias, o sonho de se livrar do aluguel, acalentado por 120 famílias pobres, havia se transformado no pesadelo de uma noite mal dormida e sobressaltada, à espera dos oficiais de Justiça e da polícia, que viriam cumprir a ordem de despejo.

O teto que protegeu alguns dos mais desprotegidos habitantes de São Paulo –mulheres, crianças, idosos, refugiados de tragédias humanitárias em outros países, deficientes físicos, excluídos de toda espécie — foi devolvido à União, supostamente para que nele seja instalado o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo.

Sim, os termômetros marcavam 12ºC, mas o gelo que sentiam as pessoas dentro do prédio da rua José Bonifácio não provinha de uma frente fria. Era o frio da vida ao relento, da vida sem endereço, da vida sem um CEP. Como obter um emprego, matricular o filho na escola e até ter acesso ao SUS, sem um comprovante de endereço???

Carmen sabe o que é esse frio do desamparo e da desesperança. Ela mesma passou por isso ao se mudar da Bahia para São Paulo.

Foto: Mídia NINJA
Foto: Mídia NINJA

A despedida do prédio teve muitas lágrimas. Pela primeira vez desde que a conheci, durante a série de 16 ocupações promovidas pela FLM em abril, Carmen –altiva como sempre — deixava correr uma lágrima espessa no rosto moreno. Foi quando pediu aos homens da ocupação que não tentassem ser heróis, que não resistissem à intervenção policial, que saíssem em paz.

“A última coisa que eu gostaria de dizer aqui é que companheiros sem-teto saiam do único teto que os acolheu na cidade. Mas eu tenho de fazer isso. A União tem de saber que, hoje, 500 pessoas foram para a rua por causa da sua insensibilidade, da negação de direitos, da falta de políticas públicas. Da falta de Justiça.”

Com os olhos também marejados, a carroceira Eliane Barros Torres, 64 anos, acompanhava o discurso de Carmen, enquanto vestia, orgulhosa, a camiseta vermelha da Frente de Luta pela Moradia. Ela queria estar pronta para emendar, tão logo a dirigente terminasse de falar, o slogan dos sem-teto: “Quem não Luta… Tá Morto! Quem não Luta… Tá Morto!”

Eliane recebe em média R$ 15 por dia de trabalho estafante, coletando o lixo da cidade, separando-o e vendendo para cooperativas de reciclagem. Por um quilo de papelão, pagam-lhe R$ 0,15. À renda mirrada, soma-se o que o marido José, de 69 anos, também carroceiro, consegue produzir. Os dois trabalham juntos, mas o avanço da idade está lhes tirando as forças. “Já passamos muitas noites dormindo debaixo da carroça. E é com essa bagagem de vida que lhe digo: quem não tem uma casa não tem nada, não tem vida, não é.”

Foi o movimento de moradia que fez os dois voltarem a ser e a viver.

As crianças assistiam a toda a movimentação dos adultos com um silêncio grave, os olhos arregalados. Devoraram o pão com manteiga acompanhado de café com leite, que a FLM providenciou.

Pais, mães e filhos, amigos e companheiros fizeram a comunhão na última refeição coletiva antes de serem jogados na rua.

Então, todos juntos, saíram do prédio –Carmen lhes pediu que saíssem com a cabeça erguida — , empunhando as faixas e bandeiras do Movimento. Uma delas dizia: “Contra a corrupção imobiliária”.

O capitão Gea, comandante da operação de despejo, acompanhou o triste cortejo sem intervir. Fora do prédio, seis caminhões de mudança estavam estacionados, aguardando para levar os móveis dos sem-teto para um depósito.

O prédio, que ficou cinco anos vago, sem uso nenhum, sem vida, carcaça de concreto, voltou à sua sina inútil. Os representantes da União que acompanham a reintegração de posse diziam que em breve o edifício sediará o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo.

Quando?, perguntou a reportagem dos Jornalistas Livres. Mas essa resposta ninguém ali tinha.

A única certeza era que, para 500 seres humanos, a partir daquela hora, as noites e os dias seriam muito, muito, muito mais frios.

Fonte: Jornalistas Livres, por Laura Capriglione

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