“A lógica ainda é cega, e procura adequar o ambiente às máquinas. Triste. Triste. De apertar o coração! Ainda mais, sabendo-se que a vocação do Brasil é a produção de alimentos, de água doce e do ecoturismo. Destruir as estruturas naturais e os serviços ecossistêmicos essenciais deveria ser um crime de lesa-pátria. Mas o imediatismo ainda é premiado. A população não se dá conta do perigo que corre”, alerta a agrônoma.
Ela tem 96 anos e uma paixão de toda a vida: osolo. Essa é Ana Maria Primavesi, pioneira no Brasil no tema da produção ecológica. Uma pesquisadora de laboratório e campo, capaz de pôr em prática uma perspectiva sistêmica sobre as formas de vida. “É preciso observar mais a natureza”, resume ela, ao falar sobre os caminhos para se produzir alimento saudável para o ser humano e o meio ambiente.
Para compreender o que está por trás da “lógica Primavesi”, é preciso também conhecer um pouco dessa mulher. Nasceu em 1920 em St. Georgen ob Judenburg, na Áustria. Chegou ao Brasil em 1949 e naturalizou-se. “Após a guerra, com tantas mortes na família, também de meus irmãos queridos, eu e meu marido, que tínhamos perdido todas as propriedades agrícolas, decidimos que era preciso procurar por paz, respirar ares novos, onde houvesse maior possibilidade de realizar nossos sonhos e esperanças”, recorda.
Ana Maria cresceu em meio ao campo e, atenta e observadora, daí foi um passo para se tornar uma cientista da área. “Meus pais eram muito ligados à atividade agropecuária e florestal. E na universidade nós éramos levados a realizar atividades de pesquisa desde o primeiro semestre. Fui treinada a observar, já em termos de sistema de produção, de forma holística. Também tive dois professores que ensinaram a fazer um tipo de ‘exame clínico’ com muita observação e visão integrada”, recorda. Assim que chegou ao Brasil, ela e o marido passaram a produzir, no interior de São Paulo, a partir de técnicas ecológicas de manejo do solo. Assim, aliava a pesquisa nos laboratórios à pratica de campo. “Tivemos certeza de nosso caminho quando meu marido conseguiu produzir um trigo tipo canadense (de altíssima qualidade) em um solo degradado”, destaca.
Mas no que consistem seus princípios? Para Ana, “é preciso observar a natureza, em como ela, a partir de ecossistemas primários, construía os ecossistemas naturais clímax, com alta capacidade de manter vida e produção, e com todas as estruturas e os serviços ecossistêmicos desenvolvidos”. Ou seja, é observar a ecologia da vida e, assim a conhecendo, se integrar ao sistema amplo capaz de gerar vida, produzir e até corrigir desequilíbrios com o mínimo de interferência humana. É mais do que pensar em produção orgânica, é pensar em produção ecológica.
Apesar de tudo, a pesquisadora não se entrega, e isso pode ser constatado na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line em abril de 2016. Com quase um século de vida, Ana não abre mão do convite para a entrevista. É uma forma de seguir propagando suas ideias e semeando esperança. “A sociedade é parte do aspecto ambiental, mas insiste-se em separar isso nos cursos universitários. Esse conhecimento fragmentado, compartimentado, analista, especializado é o grande mal”, sentencia, ao mesmo tempo que provoca a pensar numa “educação ambiental de como a vida funciona”.
Ana Maria Primavesi é graduada em Agronomia pela Universidade Rural de Viena, com doutorado em Ciências Agronômicas. Em 2012, recebeu o prêmio mundial da agricultura orgânica pela International Federation of Organic Agriculture Movements – IFOAM. Foi professora na Universidade Federal de Santa Maria, pesquisadora da Fundação Mokiti Okada e agricultora, pois praticou as técnicas da agroecologia na sua fazenda, em Itaí, interior de São Paulo.
Seus ensinamentos podem ser encontrados em cerca de 100 artigos científicos inéditos e 12 livros. Entre os trabalhos de maior influência estão: Manejo Ecológico do Solo: a agricultura em regiões tropicais (São Paulo: Nobel, 1984); Agroecologia: ecosfera, tecnosfera e agricultura (São Paulo: Nobel, 1997); Manejo ecológico de pragas e doenças: técnicas alternativas para a produção agropecuária e defesa do meio ambiente (São Paulo: Nobel, 1988);Agricultura sustentável: manual do produtor rural (São Paulo: Nobel, 1992); Manejo ecológico de pragas e doenças: técnicas alternativas para a produção agropecuária e defesa do meio ambiente (São Paulo: Nobel, 1988); Cartilha do solo (São Paulo, Mokiti Okada), Pergunte ao Solo e às Raízes (SP, Nobel, 2014), A Convenção dos Ventos (SP, Expressão Popular, 2016) e também foi lançado sua biografia por Virginia Knabben: Ana Maria Primavesi, histórias de vida e Agroecologia (SP, Expressão Popular, 2016).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como descobriu a sua paixão pelas coisas simples do campo? E como isso a transformou em cientista?
Ana Maria Primavesi – Eu cresci em ambiente rural e meus pais eram muito ligados à atividade agropecuária e florestal (mãe: de canteiros de flores, horta doméstica, plantas medicinais; e pai: de lavouras, criação de gado e atividade florestal). Meu pai fazia melhoramento animal e assim precisava de método e observação. E na universidade nós éramos levados a realizar atividades de pesquisa. Fui treinada a observar, já em termos de sistema de produção, de forma holística. Depois tive dois professores que ensinaram a fazer um tipo de “exame clínico” com muita observação e visão integrada.
IHU On-Line – Por que a senhora sempre andou tanto no campo quanto no laboratório [1]?
Ana Maria Primavesi – A ciência progride quando sustentada pelos resultados de campo, que por sua vez realimentam as pesquisas científicas com dúvidas a resolver. Com o conhecimento da prática eu tinha muitas dúvidas que precisavam ser esclarecidas. Em realidade, a ciência existe para esclarecer os processos que ocorrem na natureza e que necessitamos conhecer para melhorar o seu manejo e fortalecimento nos sistemas de produção de alimentos e de água doce.
IHU On-Line – A senhora é uma das primeiras no Brasil a tratar do tema agricultura orgânica. Como a senhora descobriu esse tipo de produção? De onde veio sua inspiração?
Ana Maria Primavesi – Em realidade, no início, toda agricultura praticada era orgânica, e, até certo ponto, ecológica. Com ensinamentos de mestres na universidade, fui estimulada a olhar por essa perspectiva. Foram eles que me repassaram os princípios de como analisar o conjunto de fatores em uma atividade agrícola, indo diretamente para a procura das causas. E as causas deveriam ser procuradas com o solo (características de um solo observando na natureza o que resulta maior produtividade de fitomassa [2]), o comportamento das próprias plantas (sintomas de deficiências minerais, vigor e arquitetura das raízes) e das associações de plantas no campo.
Na realidade, era preciso observar a natureza, em como ela, a partir de ecossistemas primários (rochas aflorando; inóspitos à vida superior e à produção), construía os ecossistemas naturais clímax [3], com alta capacidade de manter vida e produção, e com todas as estruturas e os serviços ecossistêmicos desenvolvidos. A natureza utiliza as mesmas ferramentas para recuperar solos compactados, mortos biologicamente, abandonados, durante o pousio.
O segredo é a observação, isso eu aprendi com meus pais e alguns professores generalistas (sabem um pouco de tudo do todo). Os especialistas sabem muito de pouco do todo, que chega a ser nada, sabem só de algo específico, sem relação com o todo. Ficam com uma visão muito estreita, para a prática de campo. Esse é também um grande conflito que deveria ser resolvido amigavelmente.
IHU On-Line – Quais os desafios que enfrentou quando começou a tratar do tema da agricultura orgânica? Quais resistências já foram vencidas e quais ainda persistem nos dias de hoje?
Ana Maria Primavesi – Tivemos certeza de nosso caminho quando meu marido conseguiu produzir um trigo tipo canadense (de altíssima qualidade) em um solo degradado da região de Sorocaba, em São Paulo. O trigo estava sem ferrugem, embora a variedade fosse altamente suscetível. Isso ocorreu após dois anos de práticas de recuperação biológica do solo com coquetel de adubos verdes fibrosos. Quando entramos para a vida acadêmica e docente em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, estávamos no auge da revolução verde que promovia uma agricultura nos moldes de “chão de fábrica”, em que as variabilidades de nossos solos eram uniformizadas com calagens e adubações NPK [4] pesadas. O objetivo era de atender as exigências de variedades híbridas que respondiam a doses elevadas de nitrogênio, utilizando-se para isso mecanização intensa e irrigação, e depois também herbicidas.
As terras eram uniformizadas. Os olhos d’água e pequenos cursos d’água eram simplesmente riscados do mapa, para facilitar a mecanização. Depois as árvores eram eliminadas para facilitar a administração a olho nu e a aviação agrícola. E, tudo que fosse relacionado à matéria orgânica e seu uso, era proibido. Identificamos que eram promovidos os aspectos físicos e químicos dos solos. Mas não os biológicos. Os biológicos do solo, não das plantas. Os biológicos que usam todo material orgânico, de onde retiram sua energia para agregar o solo e estabilizar os agregados e os macroporos, que são vitais para a saúde das plantas, pois garantem a entrada de água e de ar.
Assim, lutamos pela inclusão por esse aspecto biológico de solo. Isso porque sabíamos que precisávamos de um solo vivo para produzir com abundância e de forma mais barata, pois aumentava a eficiência dos insumos aplicados, que assim poderiam ser utilizados de maneira mais racional.
A luta feroz
Mas a revolução verde não contemplava o aspecto biológico. E a luta foi feroz. Mesmo iniciando como docentes da Universidade nessa visão holística de manejo do solo, da produtividade e da consideração do aspecto biológico por meio do primeiro curso de pós-graduação no Brasil, oficialmente aceito, a resposta deles foi: embora concordemos com esses conhecimentos, não poderemos incluí-los nos cursos regulares de graduação, pois precisamos treinar os estudantes para os concursos públicos, que não contemplam o aspecto biológico.
Ao encerrarmos nossas atividades universitárias, tentamos romper barreiras na consultoria técnica a grandes empresas agrícolas e à indústria. A indústria de insumos argumentava que, embora a ideia fosse excelente, precisaríamos que os manejos propostos tivessem também um produto que pudesse ser embalado e comercializado. Aí decidimos escrever um livro-texto e partir para o desenvolvimento e difusão, no corpo a corpo no campo, com produtores rurais, extensionistas [5] e estudantes, num tipo de educação ambiental com as boas práticas de manejo agroambiental. Por sorte tivemos apoio de segmentos da classe agronômica, que estava detectando calcanhares de Aquiles nos planos da revolução verde se quiséssemos a sustentabilidade.
IHU On-Line – Como compreender o fenômeno da vida a partir do solo?
Ana Maria Primavesi – Muito simples. Observando a natureza. Quando a vida iniciada nos oceanos conseguiu produzir oxigênio e com isso criar a ozonosfera [6] para filtrar a radiação ultravioleta, estava aberto o caminho para a colonização dos ambientes naturais primários sobre os continentes. Constituíam pura rocha (não havia solos, nem lençol freático, nem cadeia, muito menos teia alimentar, as amplitudes térmica e hídrica eram extremas; as condições eram inóspitas à vida superior e à produção de fitomassa, de biomassa). Era preciso priorizar a produção de solo permeável para armazenar a água das chuvas. Foi criada a primeira associação de agentes pioneiros, incumbida para produzir solos: os líquens [7], que utilizavam o artifício do albedo (cor clara que reflete radiação solar) para refrescar o substrato.
A função primeira do solo é captar e armazenar água da chuva. E esse serviço ecossistêmico ele só consegue realizar quando permanentemente vegetado. A vegetação oferece uma tripla proteção para o solo permeável: o dossel (parte aérea) das plantas, a serapilheira (partes mortas das plantas como folhas secas, ramos) e a trama radicular que mantém o solo poroso superficialmente e procura manter o solo permeável em profundidade. Logicamente a vida associada às plantas contribui para aperfeiçoar esse processo e as estruturas vitais.
A diversidade é uma ferramenta da natureza para produzir o máximo de biomassa (vegetais e fauna associada) com aenergia solar incidente por metro quadrado de área. Quando se elimina a cobertura permanente do solo (partes aéreas, palhadas, raízes diversificadas), ele costuma adensar e virar “pedra”, com características de ambiente natural primário. Ele sofre regressão para condições inóspitas à vida e à produção, como um ambiente urbano sem área verde. Tudo muito simples de entender quando se vê o quadro completo. Esses detalhes precisam ser considerados e incorporados nos sistemas de produção se desejam ser sustentáveis e garantir alimentos e água doce residente para as gerações futuras, além de reservas cambiais à nação.
IHU On-Line – Como deve ser a relação do homem do campo com o solo? O que a agricultura dos povos originais ensina nesse sentido?
Ana Maria Primavesi – O problema é que os estragos ambientais não são mais realizados pelo homem do campo, mas por robôs e máquinas do campo. O ser humano se afasta cada vez mais do contato direto com o campo, com a terra. Os povos nativos ensinavam que se utilize o tanto de terra necessária para produzir o sustento à comunidade. E se a terra degradasse, ficava em repouso. A natureza se encarrega de recuperá-la. Até os criadores de gado faziam rotação de animais, apregoadas atualmente como prática saudável para a longevidade das pastagens, como no nomadismo.
O homem moderno procura transformar o máximo de área em dinheiro, em Produto Interno Bruto – PIB, nem que isso só ocorra durante um a três anos. Depois procuram novas áreas a serem “mineradas”. E não veem que estão matando a galinha dos ovos de ouro. No caso do Brasil, certamente é o que ocorre. Como se destroem solos e microclimas de forma infantil, perdulária! As populações tradicionais procuravam seguir as leis da natureza e se enquadrar nelas. Não criar um mundo artificial, industrial, que continua dependendo dos serviços ecossistêmicos, naturais.
IHU On-Line – Como entender a agricultura para além do binômio agrotóxico e adubo?
Ana Maria Primavesi – Certamente a natureza se utiliza de nutrientes (dissolvidos da rocha local ou introduzida: calcários, fosfatos naturais, guanos, estercos, urinas e nitrogênio atmosférico durante queda de raios, cinzas e poeiras vindas desde a África, conchas moídas e outros) para nutrir as plantas e a fauna. A indústria química procura facilitar a disponibilidade de nutrientes e até permitir que se consiga estimular as plantas a produzir mais rapidamente. Mas a área comercial procura extrapolar as vendas e o uso. A natureza também usa ferramentas físicas (espinhos, pelos), biológicas (chamados inimigos naturais, fungos, bactérias) e químicas (como as fitoalexinas[8] e outras; especialmente a nutricional, procurando o equilíbrio dos nutrientes) para defender as plantas de pragas e patógenos. Também ocorrem ferramentas para suprimir plantas não desejáveis por meio da alelopatia [9].
A indústria química procura imitar a natureza, aumentando a concentração das moléculas químicas e dos indivíduos biológicos para facilitar o controle de pragas e doenças. Porém, do ponto de vista ecológico, quando um cultivo necessita de defesa contra pragas e patógenos de forma generalizada e intensa, isso é um sinal de que as plantas estão biologicamente doentes (seu campo energético está perturbado, enfraquecido) e a “polícia sanitária” da natureza entrou em ação para eliminar seres fracos, doentes, inaptos a continuar a luta pela vida. O sistema de produção deveria ser revisto e aprimorado. Com destaque para o restabelecimento de um solo vivo, com tripla camada de proteção permanente, e agregação de nutrientes que mais faltam no sistema de produção.
IHU On-Line – Como compreender o que está por trás da lógica da produção orgânica, da relação entre homem com o meio ambiente?
Ana Maria Primavesi – Oficialmente, a produção orgânica simplesmente procura substituir moléculas químicas dosagrotóxicos por opções orgânicas e os adubos solúveis por orgânicos ou menos solúveis; e, também, a redução do uso de nitrogenados sintéticos [10]. Porém, o sucesso do movimento orgânico depende da mudança de paradigma, da adoção ecológica de manejo do ambiente em agroecossistemas. A necessidade de uso de defensivos, adubos e irrigação exagerados indica que há necessidade de adequação do sistema de produção incluindo os princípios ecológicos, os princípios que a natureza usa para construir ecossistemas produtivos.
IHU On-Line – Qual o papel do solo na concepção da agricultura orgânica?
Ana Maria Primavesi – Na agricultura orgânica não existe uma concepção diferente. Na biodinâmica [11], sim. Mas, acho que aquela visão apresentada no início, de quando o ambiente primário é transformado em clímax, seja o conceito que deveria ser usado como referência. Em geral, usa-se o solo de mata como referência. Mas é somente um ponto. Quanto posso degradá-lo? Se também tenho o referencial do qual devo fugir (das características do ambiente primário, pedra), agora com dois pontos de referência extremos, fica mais fácil planejar algum manejo racional e ecológico.
IHU On-Line – Quais os benefícios, as vantagens, da produção agrícola em um solo vivo?
Ana Maria Primavesi – A principal vantagem do solo vivo é que ele vai apresentar um alto estado e grau de agregação, com muitos macroporos, o que permite a drenagem de água, a entrada de oxigênio (deve ser lembrado que as raízes seriam, além dos “intestinos” das plantas, também os “pulmões”, e precisam receber oxigênio para a respiração, do contrário a planta murcha; o “estômago” seria a rizosfera [12]) e facilita o desenvolvimento radicular. Além disso, vai permitir a ocorrência de inúmeros seres micro-meso [13] e macroscópicos associados às plantas, que vão estimular seu desenvolvimento e sua defesa naturalmente.
IHU On-Line – Quais as diferenças e a concepção da produção agrícola entre países tropicais como o Brasil e países não tropicais como os europeus?
Ana Maria Primavesi – Em climas temperados, no geral, os solos são congelados no inverno e precisam ser aquecidos rapidamente para se obter um mínimo de período vegetativo. Os solos são menos intemperizados [14] e, portanto, mais ricos quimicamente, em geral mais rasos, e armazenam mais água. Nos trópicos, os solos precisam ser protegidos do aquecimento e do ressecamento, e as raízes precisam ser estimuladas para explorar maior volume de solo para obter os nutrientes necessários.
Em situações de solos marginais, arenosos, em que ocorre deficiência múltipla de nutrientes essenciais, pode-se incluir procedimentos de enriquecimento. O processo de degradação da matéria orgânica do solo, fonte energética da vida do solo que promove sua agregação, é de 4 a 5 vezes mais rápido que em clima temperado, e pode, em casos extremos (ambiente quente e úmido, solo arenoso, recebendo elevadas doses de calcário) reduzir a matéria orgânica essencial do solo 50 vezes mais rapidamente.
Os flagelados pela degradação do solo
Assim, o solo perde rapidamente sua estabilidade, se não houver reposição da camada da matéria orgânica, e sofre mais intensamente de erosão e de perda de água por escorrimento superficial, o que resulta em enchentes, com flagelados das cheias. E, com a água das chuvas perdidas pelas enchentes, no período das águas, segue-se depois um período de seca mais intenso, com os flagelados da seca.
IHU On-Line – Por que é importante conhecer o clima e desenvolver técnicas de manejo e produção específicas em cada região, assim criando e não importando tecnologias?
Ana Maria Primavesi – Acho que as respostas anteriores já deram um sinal para esta pergunta. Devo acrescentar que, com o aquecimento global se intensificando, e com o aumento das áreas degradadas, fornecedoras do calor em excesso, e desta forma com chuvas mais intensas, mais erosivas, deveriam ser incorporados com mais urgência os elementos que a natureza utiliza para estabilizar microclimas, que é o componente arbóreo. Quebra-ventos, sistemas agroflorestais e silvipastoris seriam os mais adequados. A mecanização deveria se adequar a essas necessidades técnicas lógicas.
Entretanto, a lógica ainda é cega, e procura adequar o ambiente às máquinas. Triste. Triste. De apertar o coração! Ainda mais, sabendo-se que a vocação do Brasil é a produção de alimentos, de água doce e do ecoturismo. Destruir as estruturas naturais e os serviços ecossistêmicos essenciais deveria ser um crime de lesa-pátria. Mas o imediatismo ainda é premiado. A população não se dá conta do perigo que corre.
IHU On-Line – Quais são os principais passos para a implementação de agricultura orgânica em países tropicais?
Ana Maria Primavesi – Existem as normas de agricultura orgânica a serem seguidas. Mas, em princípio, seria interessante seguir os procedimentos ditados pela ecologia. Deve ser uma agricultura orgânica com base ecológica. Poderia ser incorporado parcialmente até pela agricultura industrial. Mas deveria ter um contato mais próximo do ser humano com a terra. Isso porque exige maior conhecimento e é mais complexo do ponto de vista gerencial. Mas é o futuro viável.
IHU On-Line – Qual a importância da teoria da trofobiose [15], de Chaboussou [16]? Em que medida as perspectivas do pesquisador francês atravessam seu trabalho?
Ana Maria Primavesi – Chaboussou defende o equilíbrio de nutrientes e reforça a noção de que desequilíbrios nutricionais, em especial daqueles provocados pela adição inconsciente de minerais por meio dos defensivos industriais ou orgânicos (cobre da calda bordaleza [17], enxofre da calda sulfocálcica), são a causa do aumento no aparecimento de doenças e pragas. É que plantas desequilibradas nutricionalmente apresentam muitas moléculas orgânicas formadas pela metade (micromoléculas, como aminoácidos e açúcares redutores) que representam um verdadeiro sopão nutritivo para as pragas e patógenos. Chaboussou veio trazer uma informação nova, específica, complementar ao que já se sabia de forma genérica.
A gente já defendia a ideia de que plantas com nutrição desequilibrada eram mais suscetíveis a pragas e patógenos. O Instituto da Potassa (representante da indústria química) tem diversos casos mostrando isso.
IHU On-Line – O argumento de quem defende a agricultura com plantas transgênicas e uso de agrotóxicos é a necessidade da produção em grande escala, otimizando o uso de recursos naturais. Mas como a agricultura orgânica pode fazer frente a esses argumentos?
Ana Maria Primavesi – Orgânica-ecológica! Como sempre digo: solos mortos geram plantas doentes que a natureza procura eliminar por meio de diversos agentes que, neste caso específico, chamamos de pragas e patógenos. Em condições normais, sem desequilíbrios, estes agentes seriam “cidadãos normais”, “guardiães normais” nos ecossistemas. Plantas doentes apresentam qualidade biológica, qualidade nutritiva para nossa alimentação, muito baixa. A transgenia, da forma praticada hoje em dia, simplesmente passa por cima desses conhecimentos ecológicos e promove a produção de alimentos deficientes nutricionalmente para a dieta humana.
E os solos, não sendo conservados nem recuperados, degradam até o ponto de precisarem ser abandonados. A transgenia não se importa em parar com a degradação dos solos. Essa é minha ressalva severa ao uso deferramentas transgênicas, que podem ser muito úteis quando ecologicamente aplicadas. Mas, hoje em dia, deixam entender que, se usadas as sementes transgênicas, dispensam qualquer outro conhecimento técnico e ecológico de manejo, o que é falso.
IHU On-Line – Quais os desafios técnicos, políticos e econômicos para desenvolver a agricultura orgânica-ecológica nos dias de hoje?
Ana Maria Primavesi – É simplesmente fazer entender que existem serviços ecossistêmicos gratuitos, que dependem de infraestruturas ambientais naturais, que nenhum serviço ambiental tecnológico pago consegue substituir de maneira aceitável e completa. E que o desmonte consciente ou inconsciente dessas infraestruturas ambientais (solo bem agregado e permeável protegido permanentemente, estruturas evapotranspiradoras hidrotermorreguladoras que são as árvores alocadas estrategicamente na microbacia hidrográfica, a diversidade de flora e de sua vida associada principalmente) leva à regressão ecológica do ambiente e, com isso, à insustentabilidade da agricultura industrial e, em escala menor, também da orgânica.
A percepção dessa infraestrutura essencial, que permite os serviços ecossistêmicos essenciais, é que é necessária e facilmente percebida ao comparar a evolução de um ambiente natural primário a clímax. Mas precisa ser aplicada, também, na agricultura orgânica. Por exemplo, um dos erros fatais na agricultura orgânica é querer enterrar a matéria orgânica. O lugar dela é na superfície da terra. A natureza deixa isso claríssimo. Outro erro é querer compostar tudo, em regiões tropicais, e aí se perde a melhor parte da atividade de degradação da matéria orgânica, em que são geradas as colas bacterianas para agregar as partículas sólidas do solo, e servir de alimento energético a fungos que, ao procurar ingerir esses açúcares com seus micélios, vão dar estabilidade aos agregados. Falta educação ambiental de como a vida funciona, tanto para os orgânicos como para aqueles que procuram praticar a agricultura em moldes industriais.
IHU On-Line – Como avalia as discussões sobre meio ambiente e produção ecológica hoje? Qual a importância do pensamento sistêmico, como, por exemplo, o que propõe o Papa Francisco na encíclica Laudato Si’ [18], para a preservação do planeta?
Ana Maria Primavesi – Mudanças são difíceis de realizar. Ainda mais quando se fala em atividades conservacionistas (nem se cogitam as recuperadoras) de médio a longo prazo, conhecimentos mais complexos que exigem gerenciamento mais complexo, se tudo tende a realizar o que for mais fácil e rápido. O papa certamente indicou as causas dos problemas atuais: sociais e ambientais, que em realidade são duas faces da mesma moeda. Falta agora mostrar o que e como fazer. A sociedade é parte do aspecto ambiental, mas insiste-se em separar isso nos cursos universitários. Esse conhecimento fragmentado, compartimentado, analista, especializado é o grande mal.
Se não for alterado para um ensino sintetizador, integrador, holístico, generalista, não vai haver solução em curto prazo. As poucas empresas que estão realizando um procedimento orgânico-ecológico estão tendo sucesso. Aprodutividade em realidade é muito maior quando se incorpora o aspecto biológico aos sistemas de produção, e para o qual a matéria orgânica diversificada, produzida localmente, é essencial.
Pacote vendido, comprado e não compreendido
O problema que vejo é que, além disso, ainda se tenta vender pacotes. Teve o pacote tecnológico da revolução verdeque ainda vigora, agora enriquecido com o pacote de controle digital (agricultura de precisão), e existe a tentativa de se vender o pacote orgânico. Não se trazem informações de como o solo e o ambiente precisam ser manejados, e que com esse conhecimento ecológico básico ficaria mais fácil adequar um pacote, seja industrial ou orgânico. Sem conhecer esses fundamentos, ao tentar usar um pacote e ele não funcionar, este é criticado, queimado, descartado. Esse é um dos grandes problemas. Quando se conhecem os fundamentos, e o pacote não funciona, procuramos encontrar as causas e corrigir o pacote, e aí se progride.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Ana Maria Primavesi – Resumindo. É preciso observar mais a natureza. Não somente a clímax (florestas; que curiosamente ocorrem tanto em condições tropicais como árticas), mas também as primárias. Procurar manter o solo permeável e protegido por cobertura vegetal diversificada (incluindo as estruturas arbóreas estratégicas) é o caminho para se chegar à agricultura sustentável.
Quando algo vai mal em um sistema de produção, deve-se procurar pelas causas, e não simplesmente combater sintomas. O componente biológico dos solos deve ser considerado. E para isso é preciso saber manejar a matéria orgânica de maneira correta, em termos de tipos, modos e localização. Observando isso, a eficiência dos insumos utilizados (sementes, adubos, irrigação) e o capital investido vão apresentar eficiência surpreendentemente muito maior, em benefício geral: produtor, consumidor, nação.
Por João Vitor Santos
Notas:
[1] Ana Primavesi sempre aliou suas pesquisas laboratoriais a práticas de campo, seja trabalhando com grupos de agricultores ou mesmo no sítio de propriedade da família. (Nota da IHU On-Line)
[2] Fitomassa: é o conjunto de toda a massa da planta, que é a biomassa (massa viva) constituída por o peso do corpo vegetal presente numa dada área. É uma medida, expressa em g/m² ou t/ tem, usado para a análise quantitativa da vegetação que cobre um território. (Nota da IHU On-Line)
[3] Clímax (perspectiva da Biologia): é o último estágio alcançado por comunidades ecológicas ao longo da sucessão ecológica. Na sucessão, primeiramente têm-se ambientes desprovidos de vegetação, seguidos por populações pioneiras (ou eceses), posteriormente as intermediárias (ou seres), até que alcance o clímax. Este estágio é caracterizado por compreender espécies que são as melhores competidoras da comunidade local. Geralmente as espécies vegetais climáxicas são de maior porte, além de mostrar alta eficiência entre produção e consumo de nutrientes. No estágio clímax, quando uma espécie é extinta, outra espécie típica de clímax a substitui, mantendo a ciclagem entre as comunidades de florestas e outros habites de topo na sucessão ecológica. Comunidade clímax representa uma situação natural em que a comunidade permanece com um nível estável em frequência de espécies (biodiversidade). (Nota da IHU On-Line)
[4] NPK: é uma sigla utilizada em estudos de agricultura, que designa a relação dos três nutrientes principais para as plantas (nitrogênio, fósforo e potássio), também chamados de macronutrientes, na composição de um fertilizante. (Nota da IHU On-Line)
[5] Extensionista: é aquele que baseia-se em experiências ou ideias promissoras, as divulga com o objetivo de encontrar soluções para problemas parecidos, adaptando-as sempre às novas realidades que vai encontrando. Na área rural, atuam como uma espécie de consultores numa ponte entre agricultores, pesquisas e técnicas desenvolvidas. (Nota da IHU On-Line)
[6] Ozonosfera (camada de ozônio): é uma região da estratosfera terrestre que concentra altas quantidades de ozônio (gás formado a partir da combinação de três átomos de oxigênio). Localizada entre 15 e 35 quilômetros de altitude e com cerca de 10 km de espessura, contém aproximadamente 90% do ozônio atmosférico. (Nota da IHU On-Line)
[7] Líquens: seres vivos muito simples que constituem uma simbiose de um organismo formado por um fungo (o micobionte) e uma alga ou cianobactéria (o fotobionte). (Nota da IHU On-Line)
[8] Fitoalexinas: são compostos antimicrobianos que se acumulam em concentrações elevadas em algumas plantas após infecções bacterianas ou fúngicas e ajudar a limitar a propagação do agente patogénico. (Nota da IHU On-Line)
[9] Alelopatia: termo criado em 1937 pelo pesquisador austríaco Hans Molisch com a união das palavras gregas allélon (mútuo) e pathos (prejuízo). Este fenômeno já era relatado desde a antiguidade e tem se tornado objeto de estudos de diversos pesquisadores ao longo dos séculos. Atualmente, alelopatia é definida como: “processo que envolve metabólitos secundários produzidos por plantas, algas, bactérias e fungos que influenciam o crescimento e desenvolvimento de sistemas biológicos. É a capacidade de as plantas, superiores ou inferiores, produzirem substâncias químicas que, liberadas no ambiente de outras, influenciam de forma favorável ou desfavorável o seu desenvolvimento. (Nota da IHU On-Line)
[10] Fertilizantes ou adubos (sintéticos ou orgânicos): são qualquer tipo de substância aplicada ao solo ou tecidos vegetais (geralmente as folhas) para prover um ou mais nutrientes essenciais ao crescimento das plantas. São aplicados na agricultura com o intuito de melhorar a produção. No Brasil, é comum referir-se aos fertilizantes como “adubo sintético” e, simplesmente “adubo”, ou esterco animal para fertilizantes de origem orgânica. Os principais fertilizantes nitrogenados sintéticos são derivados da amônia anidra. (Nota da IHU On-Line)
[11] Agricultura biodinâmica: é um método de agricultura biológica com base nas teorias de Rudolf Steiner, fundador da antroposofia. Este tipo de agricultura considera as fazendas como organismos complexos. Enfatiza o equilíbrio de seu desenvolvimento integral e a inter-relação de solo, plantas e animais como um autonutrición sistema sem intervenção externa na medida do possível, tendo em conta a perda de nutrientes devido ao vazamento de alimentos fora da fazenda. (Nota da IHU On-Line)
[12] Rizosfera: é a região onde o solo e as raízes das plantas entram em contato. O número de microrganismos na raiz e à sua volta é muito maior do que no solo livre; os tipos de microrganismos na rizosfera também diferem do solo livre de raiz. (Nota da IHU On-Line)
[13] O termo “meso” é empregado pela entrevistada no sentido de postura mediana; colocação imparcial entre medidas extremas. No caso, entre micro e macro. (Nota da IHU On-Line)
[14] Intemperismo: conjunto de fenômenos físicos e químicos que levam à degradação e o enfraquecimento das rochas. (Nota da IHU On-Line)
[15] Teoria da Trofobiose: diz que uma planta desequilibrada nutricionalmente torna-se mais suscetível a pragas e patógenos. A adubação mineral e o uso de agrotóxicos provocam inibição na síntese de proteínas, causando acúmulo de nitrogênio e aminoácidos livres no suco celular e na seiva da planta, alimento que pragas e patógenos utilizarão para se proliferar. O primeiro e formular a teoria foi Francis Chaboussou. (Nota da IHU On-Line)
[16] Francis Chaboussou: pesquisador francês autor da Teoria da Trofobiose que, na década de 1970, lançou um dos pilares da agroecologia. Formado em biologia pela Universidade de Bordeaux, na França, foi pesquisador do Institut National de la Recherche Agronomique e da Estação de Zoologia do Centro de Pesquisas Agronômicas de Bordeaux. (Nota da IHU On-Line)
[17] Calda bordalesa ou mistura de Bordeaux: é um fungicida agrícola tradicional, composto de sulfato de cobre, cal hidratada ou cal virgem e água, em simples mistura. (Nota da IHU On-Line)
[18] Laudato Si’ (português: Louvado sejas; subtítulo: “Sobre o Cuidado da Casa Comum”): encíclica do Papa Francisco, na qual critica o consumismo e desenvolvimento irresponsável e faz um apelo à mudança e à unificação global das ações para combater a degradação ambiental e as alterações climáticas. Publicada oficialmente em 18 de junho de 2015, mediante grande interesse das comunidades religiosas, ambientais e científicas internacionais, dos líderes empresariais e dos meios de comunicação social, o documento é a segunda encíclica publicada por Francisco. A primeira foi Lumen fidei em 2013. No entanto, Lumen fidei é na sua maioria um trabalho de Bento XVI. Por isso Laudato Sí’ é vista como a primeira encíclica inteiramente da responsabilidade de Francisco. A revista IHU On-Line publicou uma edição em que analisa debate a Encíclica. Confira aqui. (Nota da IHU On-Line)
Fonte: IHU On-Line