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Dois cientistas sociais vão a uma escola central, em S.Paulo, e compreendem um aspecto do movimento pouco notado nas análises convencionais

Por Caetano Patta e Vinicius Saragiotto M. do Valle | Imagem: Laura Viana do Outras Palavras

“Aqui não vejo nenhum clube poliesportivo
Pra molecada frequentar, nenhum incentivo
O investimento no lazer é muito escasso
O centro comunitário é um fracasso”
(Racionais MC’s, 1993. Fim de semana no parque)

A Escola Estadual Fernão Dias, na zona oeste da capital paulista, converteu-se numa espécie de vitrine da onda de ocupações que quer barrar a chamada “reorganização escolar” promovida pelo governo estadual de São Paulo.

A justificativa oficial para impactar a vida de 700 mil alunos com o fechamento de 94 escolas no estado é separá-las por ciclos, em razão de suposto melhor rendimento. Outro argumento é que certas escolas estavam funcionando com número reduzido de alunos.

A indignação diante da possibilidade de separar irmãos, tornar maior a distância entre a casa e a escola e agravar a superlotação de salas gerou apreensão entre pais, alunos, organizações e movimentos ligados à educação. E levou os alunos a promover passeatas que acabaram dando lugar a um movimento surpreendente: criaram “1, 2, 3… Vietnãs” de crianças e adolescentes, dificultando a estratégia consagrada do governo estadual de desqualificação midiática, violência policial e enquadramento jurídico, utilizada com categorias do funcionalismo público em greve e universitários.

Contudo, o que motivou nossa visita foi saber o que levou esses adolescentes a tomar para si tal compromisso, saber como é seu dia a dia, o que pensam de política, dos políticos, dos partidos e do que mais surgisse na conversa…

Foi assim que sentamos para papear na escadaria do Fernão com Leandro (nome fictício), estudante do primeiro ano do ensino médio noturno, 15 anos, negro, com um irmão estudando na mesma escola.

Leandro primeiro ficou “meio assim”, disse para falarmos com o “porta-voz” do movimento. Depois de insistir um pouco, dizer que não estávamos querendo posicionamentos da ocupação e que não éramos da imprensa ou de movimentos organizados, ele topou conversar sobre si mesmo.

Leandro morava na Raposo Tavares, lá pelo quilômetro 13. Nos fins de semana, trabalha em um restaurante (bem) mais adiante na rodovia. Mudou-se recentemente para o Tucuruvi, Zona Norte da capital.

E não preferia estudar mais perto de casa? “Não!”

Logo de cara, ele já abriu uma imensa janela para compreender o que possivelmente está em jogo para parte considerável destes meninos. É longe sim. “Eu diria que 10% dos alunos moram aqui mais no centro. O resto tudo mora no Rio Pequeno, Raposo, Jaguaré…”.

Além disso, serviço de transporte é complexo. Ele leva menos tempo da Zona Norte para a escola localizada em Pinheiros do que levava quando morava na Raposo, que fica na mesma região. Isto porque do Tucuruvi para Pinheiros dá para ir de metrô.

Mas a questão da distância dá lugar a outras questões quando Leandro começa a explicar porque não quer perder a escola. Ele estuda à noite, mas chega mais cedo. Pinheiros é da hora. Joga bola nas quadras do BNH da Vila Madalena. Vai na Fnac e no Shopping com os amigos. Sempre tem coisa rolando no largo da Batata. E tem algo mais tenso: em Pinheiros o enquadro da PM é diferente que na Raposo. “Aqui eles não batem, sempre tem gente em volta”. “Se fecharem a minha escola vou ter que estudar perto de casa”.

Leandro leva enquadro sempre. Inclusive ao sair à noite para comprar mantimentos para a ocupação. Os policiais anotaram nome, documento e gravaram seu rosto. No outro dia, um mesmo policial estava no cordão de PMs fora do Fernão e começou a chamar Leandro e outros dois colegas pelo nome. Disse que quando entrassem lá, seriam os primeiros a ser levados.

O menino contou também que antes de estudar no Fernão estudava no Godofredo Furtado, outra escola no bairro de Pinheiros. Lembrei de uma matéria que vi no Globo, de 2008, que tratava desta escola e dizia que tinha poucos alunos, 15 por sala, por não haver demanda por escola pública na região. Quando os pais tinham mais dinheiro, colocavam os filhos nas diversas escolas privadas do bairro. Isso era o que dizia a matéria.

Perguntei a Leandro o que ele achava. Sua visão é relevante para pensar o que está acontecendo: quando estudava lá, conta, sugeriu a vários amigos que mudassem para a escola, mas quando os pais tentavam a matrícula, a diretoria dizia que não tinha vaga. Chegaram a fechar salas e períodos. Dá o que pensar. Quanto do “esvaziamento” das escolas é “natural” e quanto foi planejado? Será que querem o Leandro e 90% de seus colegas que moram para lá da ponte frequentando aquele pedaço?

E quando foi que Leandro se envolveu pela primeira vez com política? Foi pelos 20 centavos, em Junho de 2013, com 13 ou 14 anos. Foi à passeata, encontrou um antigo professor da escola e ficou empolgado. O professor era com quem Leandro e seus amigos discutiam política, a sociedade, o Brasil.

Nossa conversa foi interrompida por uma notícia da Folha de São Paulo dizendo que todos os fechamentos haviam sido cancelados. Meninada pulando, cantando “escola de luta…”, uma menina chorou de felicidade. “Acabou! A gente conseguiu”. Um colega vem correndo, abraça Leandro, e diz “A gente é foda, moleque! Eles deram pra trás!”.

Nesse momento ligaram o som, que passou a tocar rap nacional, funk e pop, e o lugar que antes tinha um tom sério ganhou ares de festa. Mas a descontração durou pouco, e logo todos ergueram a guarda novamente. Um dos estudantes ligou o celular na caixa de som e repassou o áudio que uma colega havia mandado por whatssap, dizendo que a chamada era um erro e tudo continuava como antes. A Folha havia feito uma “confusão”.

A “reorganização” segue de pé e o governador continua dizendo que é um “movimento político” e que não vai recuar. O número de ocupações cresce e a Fernão está lá, com sua aguerrida mobilização, que virou xodó de movimentos de esquerda, intelectuais e artistas progressistas de classe média, mas também exemplo e apoio para a luta em escolas públicas por toda a cidade. Quem está fazendo isso são meninos e meninas, entre os 11 e os 17 anos.

Há muito o que pensar e tentar compreender de tudo isso. A chave que Leandro nos emprestou para compreender uma dimensão a mais do impasse criado pelo governo estadual foi a do direito a cidade. Além de uma escola boa, de um bom emprego e um bom salário, o Leandro quer quadra igual à do BNH, quer Fnac, quer Shopping, quer os eventos que acontecem no Largo da Batata e não quer apanhar e nem ficar com medo de sumir na mão da PM.

Aquela conversa na escada do Fernão não cabe na equação que o governo estadual insiste em repetir para justificar a “reorganização”, que aos olhos dos alunos parece bagunça. Tirar tudo isso do Leandro é bagunçar sua vida. Leandro é nome próprio, não estatística.

A organização das meninas e dos meninos desafia a imagem do estudante como um elemento passivo e desinteressado, tão presente no discurso que pretende projetar a escola pública como formadora de mão-de-obra barata e, portanto, merecedora de poucos recursos e disciplina mais afim ao sistema carcerário que à educação.

A onda de ocupações vem mostrando sujeitos que não se encaixam na caricatura perversa do jovem pobre promovida por setores conservadores, cujo resultado é o fechamento de escolas e a redução da maioridade penal. A imagem que se constrói cotidianamente da rede pública nos grandes meios de comunicação é de terra arrasada, de caso perdido.

Ao pintarem paredes, lavarem banheiros e capinarem pátios que não vinham recebendo a devida manutenção, além de mostrarem alta capacidade de organização, compromisso, criatividade e consciência, tomam para si o papel de principais interessados no futuro e passam para o governo a carapuça do descaso e da irresponsabilidade.
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Caetano Patta é mestrando em Ciência Política na USP e Vinicius Saragiotto M. do Valle é mestre e doutorando em Ciência Política na USP.

 

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