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Quem acompanha o cotidiano da política minúscula em curso no Brasil não mais se surpreende com tamanhos absurdos, mas este é exatamente o maior risco: normalizar o que não podemos aceitar; é preciso ir além das disputas narrativas e reagir

Há décadas ajudando governos a formular e a implementar políticas públicas para combater a pobreza e a fome, as desigualdades, o uso sustentável do meio ambiente e a melhorar o acesso à saúde e à educação, entre tantos outros direitos, as ONGs estão mais uma vez na mira do governo brasileiro. De parceiras no passado, passaram a ser inimigas. De inimigas, numa gestão de ultradireita, tornaram-se alvos de ataques.

Já em setembro, ao discursar da ONU, o presidente Jair Bolsonaro mirou sua metralhadora verbal no cacique Raoni e nas ONGs que denunciam a exploração econômica predatória da Amazônia. O “recado” teve mais uma ação prática ontem, quando a operação “Fogo do Sairé” prendeu preventivamente quatro membros da Brigada de Incêndio de Alter do Chão (PA) e fez uma busca ostensiva e sem mandato judicial, nas dependências da ONG Projeto Saúde e Alegria, com sede em Santarém (PA).

Ninguém minimamente responsável, que conheça o trabalho da Brigada, um grupo de voluntários que defendem (atenção, defendem!) a floresta dos incêndios, ou o premiado Projeto Saúde e Alegria – que desde 1987 atua nas comunidades ribeirinhas da Amazônia e é considerada uma das 100 melhores do Brasil –  pode se omitir diante de tão grave ataque. Ele não é só injusto e persecutório, como também é parte de uma estratégia maior de desestabilização de um dos pilares mais importantes da nossa democracia: a atuação independente e organizada da sociedade civil.

É óbvio, portanto, o círculo que se fecha a partir de ideias que cerceiam liberdades no Brasil, buscando eliminar não apenas direitos conquistados, mas os princípios éticos basilares da nossa República. Para tal, o recurso da disseminação constante de mentiras, coações e ameaças é o principal instrumento do governo federal, que já demonstrou diversas vezes sua truculenta oposição às causas socioambientais e a quem as defende. As ações e discursos dos últimos dias, permeados de fortes ameaças de recrudescimento da violência e repressão a diversos setores sociais são indícios concretos, facilmente interpretados como declaração de guerra contra o Estado democrático de direito no país.

Num contexto de normalidade e pleno funcionamento das instituições democráticas, arroubos anticonstitucionais jamais seriam permitidos. E basta uma rápida busca nas redes sociais e em notícias veiculadas para saber que, para muitos cidadãos e cidadãs do Brasil, a percepção é que tanta polarização e truculência já passaram dos limites. Estamos cruzando linhas perigosas da civilidade política e toda a nação perde com isso.

Os fatos são inegáveis. Já no primeiro dia à frente do Executivo, Bolsonaro, via medida provisória, transferiu a demarcação de terras indígenas e quilombolas para o Ministério da Agricultura (raposa cuidando de galinheiro) e extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). O golpe mais incisivo desta MP, no entanto, foi o poder dado à Secretaria de Governo de monitorar a atividade de organizações não governamentais, aberração que precisou ser revertida pelo Congresso Nacional. Insatisfeito, em abril, o governo baixou decreto extinguindo e limitando a criação de órgãos colegiados no governo federal, minando a participação social nesses espaços, parando projetos e esvaziando políticas públicas fundamentais para as pessoas.

Parece não haver limites (nem legais) nessa disputa e bolsonaristas ignoram até a crescente perda de credibilidade fora de suas bolhas. Eles seguem destruindo violentamente quem os criticam, alimentando de forma irresponsável as fake news que produzem cotidianamente, sem o mínimo pudor. No caso do derramamento de óleo no litoral do Nordeste, por exemplo, maior crime ambiental em extensão da história do país, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, insinuou que o Greenpeace poderia ser um dos responsáveis. Postou em sua conta no Twitter a imagem de um navio da ONG em alto-mar, supostamente navegando em águas nordestinas à época do derramamento. A foto do Esperanza, porém, havia sido tirada em 2017 no litoral da Espanha.

Quem acompanha o cotidiano da política minúscula em curso no Brasil não mais se surpreende com tamanhos absurdos, mas este é exatamente o maior risco: normalizar o que não podemos aceitar. É preciso ir além das disputas narrativas e reagir.

Do Parlamento esperamos maior e mais efetiva resposta. Inclusive contra o requerimento, já lido no plenário do Senado, para abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigue as ONGs que atuam na Amazônia. O autor, senador Plínio Valério (PSDB–AM), usa como uma das justificativas o crescimento da existência de “ONGs de fachada” no país, também apontadas pelo presidente Bolsonaro como uma das causas do aumento das queimadas e do desmatamento naquela região. Mas está clara sua real intenção: criminalizar o trabalho destas organizações.

Vale lembrar que não é de hoje que as organizações não governamentais são questionadas e criticadas no Brasil. Entretanto, dados da Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostram que as duas CPIs das ONGs no Senado (2001-2002 e 2007-2010) resultaram em número ínfimo de irregularidades constatadas quando considerado o universo em questão, composto por mais de 820 mil instituições. E, para quem acha que as ONGs recebem muito dinheiro público, a publicação “Perfil das organizações da sociedade civil no Brasil”, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostra o oposto. As transferências de recursos federais para entidades privadas sem fins lucrativos (associações, organizações religiosas ou grandes fundações na área da saúde) vêm caindo desde 2001. Entre 2010 e 2017, apenas sete mil organizações da sociedade civil receberam verbas da União. Esse número não chega nem a 1% do total de ONGs em atividade.

Na mesma linha de responder aos ataques, é importante ver muitos(as) parlamentares expressando já desacordo com o projeto de lei do excludente de ilicitude apresentado pelo Executivo ao Congresso no último dia 21, que “Estabelece normas aplicáveis aos militares em operações de Garantia da Lei e da Ordem”. Bem-vindas também são as falas públicas sobre as tantas referências recentes a um “novo AI5” no Brasil, bola levantada no final de outubro pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que agora vai responder a dois processos disciplinares no Conselho de Ética da Câmara de Deputados.

Num contexto como esse, é necessário lembrar que já retrocedemos demais. O status atual do Brasil no que diz respeito a restrições legais e práticas ao pleno gozo dos direitos fundamentais já passou para “Obstruído”, segundo o sistema de monitoramento da Civicus, uma organização internacional dedicada a fortalecer a ação cidadã global. O Brasil se junta agora a países como Cazaquistão, Guatemala, Jordânia, Quênia, Tunísia, Ucrânia onde, além das graves violações aos direitos humanos, se desrespeitam as liberdades fundamentais como a de associação, de reunião pacífica e de expressão.

É preciso retomar o caminho democrático do país e o momento exige que as instituições da República, em uníssono, reafirmem que as ONGs merecem respeito, muito respeito. Elas são construídas por pessoas que, todos os dias, saem de casa para literalmente salvar vidas, cuidar do meio ambiente e para oferecer alternativas a problemas que, geralmente, a gestão pública não consegue resolver ou com os quais não se importa suficientemente. Estas pessoas devem ter a  proteção do Estado pois defendem, com suas vidas, o bem comum, um conceito que, infelizmente, o atual governo privatista e ultraliberal não tem capacidade de entender.

Finalmente, é a sociedade civil que, uma vez organizada, tem escrito as maiores histórias de superação e solidariedade que conhecemos no mundo, inspirando e fomentando as melhores e mais inclusivas políticas públicas existentes hoje no Brasil e em tantos outros países. Atacar grupos que se organizam para construir uma sociedade mais digna e sustentável é como atirar no coração da República e foi pensando nisso que o GT Agenda 2030 lançou a campanha “Não calem nossas vozes”.  Ela é o nosso jeito, pacífico e propositivo, para difundir o estratégico papel das ONGs. Mas é também um recado de que nossas vozes são muitas e por mais que tentem, não nos calarão.  Parafraseando o famoso frevo pernambucano de Capiba, “somos madeira que cupim não rói” e, queiram ou não queiram os juízes, nossa história em defesa de direitos já faz de nós campeãs. Governos vêm e vão. Nós, juntos e juntas, seguiremos atuando, com Saúde e Alegria, pela boas e justas causas que nos unem.

(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

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