“A universidade é o lugar onde devemos discutir nosso mal-estar tendo em vista a necessidade de superá-lo”, afirma o antropólogo.
“Junho de 2013 não acabou, suas pontas soltas estão sendo novamente retomadas. A ocupação das escolas é exemplo disso”, avalia Alex Martins Moraes em entrevista à IHU On-Line. Para ele, as ocupações de escolas em vários estados brasileiros podem ser compreendidas como “uma tomada de assalto transversal da política por parte dos estudantes” que “conseguiram desenvolver a organização e a confluência necessárias para se constituir enquanto sujeitos políticos tanto nos grandes debates, que dizem respeito ao orçamento público e às mudanças legislativas, como nos debates mais localizados, que se referem à democracia institucional, à relação com diretores e conselhos escolares”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o antropólogo reflete sobre a participação da universidade na discussão política, comenta alguns aspectos do lulismo em relação à juventude, como um expoente da esquerda tradicional, e as ações do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST enquanto representante de novas manifestações sociais e pontua que “as expressões mais visíveis da esquerda carecem de um programa político que vá mais além de mitigar os efeitos da precarização e que apresente saídas para ela”.
Os efeitos da falta de saída, ressalta, podem ser vistos no “círculo vicioso de uma vida sem futuro, na qual ‘amanhã’ é sinônimo de ‘hoje’”. Nesse “estado de decepção gerado pelo empobrecimento do horizonte político da esquerda governista”, emergem “propostas conservadoras” que sugerem deixar a “parafernália ideológica” de lado para “pensar seriamente em como preservar o patrimônio conquistado e sustentar o desenvolvimento capitalista no longo prazo”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que motivou a escrita do artigo “O que os secundas têm a ensinar à academia”? Por que você direciona a crítica à academia?
Alex Martins Moraes – Quando a ocupação das escolas se espalhou pelo Rio Grande do Sul, percebi um entusiasmo crescente entre meus amigos e colegas na academia. Eles queriam participar dessa incrível liberação de energias sociais, queriam contribuir para que o movimento iniciado pelos secundaristas continuasse reverberando numa conjuntura em que a política parece ter sido totalmente capturada pelos jogos de poder palacianos. O contato com a luta das escolas revigorou o ânimo combativo de alguns universitários. Na UFRGS, por exemplo, surgiram diversos fóruns para discutir formas de intervenção política que fortalecessem a oposição ao golpe parlamentar. Professores de outras universidades do país escreveram cartas abertas aos estudantes. O objetivo era gerar debates, redes de solidariedade em política, estratégias de intervenção.
O problema é que, quando se trata de pensar em táticas e plataformas de luta política, muitos professores universitários, mesmo aqueles que se sentem posicionados à esquerda do espectro ideológico, tendem a identificar “problemas a serem resolvidos” apenas do lado de fora das instituições de ensino superior. Dificilmente eles questionam as estruturas de poder que sustentam sua legitimidade intelectual e institucional. Assim, a maioria das propostas de mobilização aventadas por professores, tais como a escrita de cartas abertas, a organização de aulas em defesa da democracia e até mesmo os chamados de greve estão muito aquém da potência política do estudantado. Elas se dirigem ao exterior da universidade, não sustentam outro programa senão a defesa das políticas científicas e educacionais prévias ao golpe. São, portanto, meramente defensivas, reativas.
A hipótese que desenvolvo no artigo publicado por Outras Palavras é a seguinte: são os estudantes que estão em condições de sublevar a universidade. É necessário acompanhá-los e alentá-los na exploração das consequências mais radicais do seu descontentamento político. São eles que vivenciam no cotidiano os efeitos mais atrozes da falta de recursos, da escassez de bolsas, do elitismo, das chantagens morais e materiais inerentes a qualquer instituição hierárquica. Eles constituem a eterna minoria nos conselhos universitários. Esta posicionalidade institucional determina um tipo de experiência cuja politização configura, na minha opinião, o ponto de partida para sintonizar as lutas universitárias com outros processos democratizadores e inclusivos.
Sem protagonismo estudantil, qualquer demanda democrática construída a partir da universidade carece de substancialidade e termina condenada ao limbo da impotência política. A “ideologia da harmonia”, segundo a qual estudantes e professores são parte de uma mesma família acadêmica assentada sobre interesses comuns, é falaz. O dia a dia da universidade a desmente. Isso não quer dizer que os professores não possuam instrumentos para transformar as instituições que habitam. Ocorre que muitos deles não parecem dispostos a mobilizá-los, em decorrência dos enormes custos políticos implicados nesta atitude. Que diretor de programa de pós-graduação estaria disposto a garantir paridade entre docentes e discentes nos conselhos? Que comissão avaliadora aceitaria preterir os critérios produtivistas no momento de selecionar novos estudantes de mestrado e doutorado?
“A maioria das propostas de mobilização aventadas por professores estão muito aquém da potência política do estudantado”
IHU On-Line – No artigo, você afirma que a “admiração pelo protagonismo dos secundaristas se mistura com um certo mal-estar nos corredores da Universidade”. Como chega a essa conclusão? E de que modo imagina que a universidade poderia contribuir nesta discussão?
Alex Martins Moraes – No artigo que mencionas eu reviso minha experiência institucional imediata e constato a existência de certo mal-estar que parece transcender as fronteiras da antropologia, área do conhecimento na qual atuo. As categorias de análise que utilizo vêm sendo desenvolvidas há vários anos no contexto do Grupo de Estudos em Antropologia Crítica – GEAC, que surgiu em 2011 como espaço de autoformação em antropologia organizado por estudantes de graduação e pós-graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Para o GEAC, a antropologia, assim como qualquer outra disciplina acadêmica, é resultado de processos localizados de institucionalização. Neste sentido, não há “antropologia” em abstrato, apenas antropologias situadas, com características institucionais específicas. Se tais antropologias guardam semelhanças entre si, isso se deve a sua inscrição numa espécie de sistema-mundo antropológico mais abrangente, no qual um conjunto de instituições tenta promover determinados hábitos de leitura, formas de intercâmbio intelectual, regimes de legitimação e validação do conhecimento. As categorias de análise originadas no contexto do GEAC me dão elementos para comunizar — no sentido de tornar comum — minha experiência de institucionalização.
A concepção de mal-estar acadêmico que eu desenvolvo é fruto, por um lado, de certo tipo de vivências institucionais e, por outro lado, da análise dessas vivências no marco de um projeto coletivo preocupado por colocar em prática formas de pesquisa mais amigáveis com as experiências dos sujeitos envolvidos no processo de investigação. Quando retomo o exemplo da antropologia disciplinar conservadora, que conheço de dentro, o faço na expectativa de politizar experiências potencialmente compartilhadas com profissionais e estudantes de outras áreas.
Os espaços mais conservadores de formação em antropologia conclamam seus neófitos a assumirem a posição de mediadores evanescentes entre a realidade social, localizada fora da universidade, e o “ponto de vista antropológico”, entendido como a forma adequada de refletir sobre referida realidade. Sempre se reconhece que o antropólogo é, ele mesmo, parte dos fenômenos que observa, mas apenas enquanto antropólogo. Não enquanto militante popular, feminista, gay, crente, comunista, anarquista, índio, negro, etc.
Como afirma a antropóloga Juliana Mesomo num texto recente, o sujeito precisa se “dessubjetivar” para poder assumir o “ponto de vista antropológico”. Procedimentos disciplinares desta natureza vão afastando paulatinamente as pesquisas acadêmicas dos dramas que configuram a existência enclassada, generizada e ideologizada dos próprios pesquisadores. Mas o ponto de vista antropológico não tem nada de sublime. Ele é, em si mesmo, a mistificação do processo disciplinador através do qual somos levados a abandonar lealdades sociais imediatas em favor de uma fidelidade disciplinar abstrata que, por sua vez, reproduz hierarquias concretas.
Ocupação dentro da universidade é censurável
Vou dar um exemplo que pode tornar mais claro meu ponto de vista. Quando os estudantes de mestrado em antropologia da UFRGS paralisaram suas atividades acadêmicas em 2011 para questionar a escassez de bolsas e a falta de democracia no seu programa de pós-graduação, eles foram menosprezados por um número considerável de docentes. Alguns chegaram a dizer que sua greve espelhava a atitude infantil típica dos estudantes da graduação. Desta acusação podemos depreender que o estudante de graduação é encarado como um sujeito indócil e desajustado que precisa ser disciplinado ao longo da formação acadêmica. Quando um estudante de mestrado decide politizar sua experiência contra os interesses da instituição, ele é visto como uma pessoa que não foi exitosamente disciplinada, que não assimilou a postura sóbria, conciliadora e liberal que sustenta o “ponto de vista antropológico” legítimo. Quando a análise da nossa própria realidade origina alternativas políticas efetivas, que podem passar, inclusive, pela ruptura dos consensos institucionais estabelecidos, somos desacreditados. Apoiar uma ocupação de terras, uma greve, a resistência indígena e quilombola é válido. Debater e praticar democracia através de greves e ocupações dentro da universidade é censurável.
Se nos aproximarmos da realidade de cada departamento, faculdade ou programa de pós-graduação, veremos que as exclusões se multiplicam ao longo da teia micropolítica dessas instituições. Caberia perguntar como a mortificação da experiência cotidiana dos estudantes ocorre, por exemplo, nos institutos de letras, de filosofia, nas faculdades de história, jornalismo, psicologia etc. Há pouca informação a respeito. A partir do Grupo de Estudos em Antropologia Crítica, nós sugerimos que é preciso transformar este campo de batalha que é a universidade num lugar de trabalho de campo, num lugar de pesquisa e reflexão encarnadas, que não sirvam apenas para retroalimentar falsos debates, desarraigados de qualquer encaminhamento político.
Queria fazer, ainda, uma observação sobre os processos de disciplinamento aos quais me referia um pouco antes: seu êxito não depende de nossa disposição a aceitá-los. Existem constrangimentos institucionalmente validados que garantem sua reprodução. Um deles é o produtivismo. O mérito de uma pesquisa é deduzido de sua publicabilidade e esta, por sua vez, exige forte submissão do pesquisador às modas e ao cânone de sua respectiva área. Claro que nada me impede de produzir enunciados radicais, dizer a verdade na cara do poder etc. Desde que isto ocorra nas páginas de uma revista indexada.
Contudo, quando me submeto ao imperativo da publicação intensiva, torno-me um sujeito radicalizado no discurso, mas impotente na prática política. Publicar vários artigos por ano exige um investimento de tempo e energia que compromete meu envolvimento com outros engajamentos intelectuais. É difícil publicar intensamente e, ao mesmo tempo, conduzir longos estudos exploratórios, desenvolver pesquisa-ação ou pesquisa militante em determinados movimentos ou coletivos, aprofundar a revisão crítica e exaustiva dos discursos teóricos que chegam até mim. Respondendo a tua segunda pergunta, eu diria que a universidade é o lugar onde devemos discutir nosso mal-estar tendo em vista a necessidade de superá-lo.
A universidade, em abstrato, não tem nada a dizer sobre a questão. Entretanto, a exploração dos conflitos engendrados no seu interior nos permite vislumbrar alternativas concretas para ir mais além da impotência política atual.
“Uma análise de conjuntura que não saia em busca de inconsistências e contradições só reproduz a narrativa do poder”
IHU On-Line – A mesma crítica que você faz à universidade, faz à esquerda brasileira hoje? Nesse sentido, como tem compreendido a atuação da esquerda ou das esquerdas no país?
Alex Martins Moraes – Talvez não se trate exatamente de uma crítica à universidade, mas sim do desenvolvimento de categorias teóricas e efeitos de verdade que politizem a experiência de disciplinamento no contexto da instituição universitária. Uma crítica exteriorizada, que não esteja interessada em gerar agenciamento político se aproxima do pedantismo solipsista. Uma análise de conjuntura que não saia em busca de inconsistências e contradições só reproduz a narrativa do poder.
Tomás Guzmán, antropólogo colombiano que integra a Rede de Antropologia Crítica, diz algo muito bonito a respeito. Em diálogo com o Marx de Walter Benjamin, ele define a crítica como o esforço de apresentar a realidade num sentido estratégico, de construir para o pensamento uma totalidade em ruínas, um tempo carregado de tensão. No contexto da militância política, esta é a postura crítica que preconizo. Se a intenção é incidir nas relações de força, então qualquer sujeito de esquerda precisa deixar-se envolver pelas tensões do seu tempo e acompanhar, fortalecer, incitar as linhas de força mais radicais que delas emanam.
Em 2013, algumas dessas linhas de força se manifestaram nas ruas. O governo teve a oportunidade de acompanhá-las. À época, Dilma chegou a comprometer-se com uma assembleia constituinte exclusiva para a reforma política, mas voltou atrás, voltou para dentro do gabinete, fechou sua comunidade de diálogo. Adotou uma postura reacionária. O terreno ficou livre para as jogadas de cooptação da mídia e para a atuação repressiva das forças de segurança.
Mas Junho de 2013 não acabou, suas pontas soltas estão sendo novamente retomadas. A ocupação das escolas é exemplo disso. As próprias marchas contra o golpe tinham certo sabor de Junho, na medida em que não se reduziram a defender este ou aquele partido e afirmaram a disposição coletiva de não aceitar que os mesmos atores de sempre monopolizassem o cenário do poder e definissem, sozinhos, uma resolução para a crise. É com este tipo de motivação política que Dilma deverá negociar a legitimidade do seu governo caso regresse ao cargo.
IHU On-Line – Como a universidade brasileira tem se comportado em relação à esquerda nesses últimos anos? Tem feito críticas efetivas ou não?
Alex Martins Moraes – Alguns universitários têm procurado avaliar a conjuntura com esmero e oferecer perspectivas criativas que sofistiquem as estratégias da esquerda. Existe uma quantidade considerável de pesquisas que nos ajudam a entender o impasse do projeto lulista e que indicam coordenadas para reabrir o debate político sobre o sentido da transformação social. As instituições universitárias, por sua vez, ingressaram num processo de democratização relativa. Cotas sociais e raciais foram introduzidas nas principais instituições de ensino superior do país. Essas situações transformaram a universidade num dos epicentros de problematização das políticas públicas longamente demandadas pelos movimentos sociais e parcialmente acolhidas pelos governos petistas.
Contudo, de forma análoga ao que ocorre em certos fóruns da esquerda, o debate sobre democracia na universidade acaba reduzido a uma questão de acesso, não de estrutura. Marginalizam-se as discussões sobre como a instituição deve se transformar para permitir a expansão das demandas do novo estudantado e reconhecer a singularidade de sua experiência social.
IHU On-Line – Alguns têm feito uma crítica de que a esquerda tradicional não consegue dialogar com jovens precarizados que estudam e trabalham, e de que os novos movimentos de esquerda que surgem hoje têm um vínculo e uma linguagem direcionada para jovens de classe média e não se dirigem nem impactam os jovens trabalhadores precarizados. O que lhe parece?
Alex Martins Moraes – Esta é uma pergunta chave que introduz debates ainda carentes de sistematização. Em primeiro lugar, o que concebemos por esquerda tradicional? Se com este termo nos referimos aos partidos políticos autodenominados de esquerda, sejam eles de oposição ou de situação, então eu diria o seguinte: o lulismo soube dialogar parcialmente com os jovens precarizados que estudam e trabalham.
O ProUni e o Pronatec foram estratégias para oferecer a esses jovens a possibilidade de disputar melhores postos de trabalho através da obtenção de diplomas universitários ou técnicos. As próprias cotas sociais pretendiam mitigar no curto prazo os efeitos excludentes das desvantagens iniciais de classe e abrir melhores perspectivas profissionais aos jovens de setores populares. Partidos como o PSOL e o PSTU demoraram um pouco para se dar conta da relevância dessas políticas e só tardiamente se engajaram na disputa pelos seus efeitos e pela radicalização dos seus objetivos.
Quanto aos novos movimentos sociais, quais seriam eles? O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST é um novo movimento social? Eu diria que sim. O MTST politiza a demanda por moradia e ao fazê-lo confronta interesses poderosos associados à especulação imobiliária e às grandes empreiteiras que capitaneiam, junto ao agronegócio e ao setor financeiro, o modelo de acumulação em curso. O MTST não fala aos jovens precarizados? Creio que fala. O acesso à moradia libera o sujeito do ônus do aluguel e lhe oferece mais margem de manobra no momento de negociar sua força de trabalho. Agora, uma coisa é verdade: as expressões mais visíveis da esquerda carecem de um programa político que vá mais além de mitigar os efeitos da precarização e que apresente saídas para ela. A proposta de gerar mais empregos na indústria não procede porque a composição do capital mudou dramaticamente.
Jovens de classe média também estão precarizados
Quanto aos jovens de classe média, eles também estão precarizados. Sem perspectiva de emprego formal, com salário estável e benefícios laborais, eles vendem serviços intelectuais, criativos etc. a diferentes patrões e são pagos por hora de trabalho ou por “produto” vendido. Alguns se integram na crescente “economia hipster”, que consiste, por exemplo, em ocupar casas desabitadas, alugar espaços de trabalho coletivo ou armar pequenos empreendimentos nos quais cada um vende suas habilidades num mercado sempre instável. Tornaram-se empresários de si mesmos e assimilaram, em certa medida, a ideia de que estão gerando alternativas ao sistema.
Temos, aqui, um sintoma de falsa consciência? Sim e não. O fechamento do mercado formal abre espaço para apostas ambiciosas através das quais os jovens procuram autovalorizar suas próprias aptidões. Seu trabalho produtivo não está imediatamente subsumido à estratégia produtiva de um grande empreendimento capitalista, por exemplo. Mas, por outro lado, a intensa competição no marco da economia hipster, cada vez mais populosa, rebaixa o valor da força de trabalho dos seus protagonistas e os obriga a ingressar em rotinas laborais cada vez mais intensas e asfixiantes.
O que fazer a respeito? Eu diria o seguinte: é preciso, por um lado, afirmar a possibilidade de autovalorização da força de trabalho e, por outro, reduzir ao máximo os constrangimentos que levam a sua desvalorização num mercado competitivo. Regressamos, então, à tópica marxista: os meios de produção devem passar ao controle dos produtores. Caso contrário, qualquer estratégia de organização alternativa do trabalho tenderá, no médio prazo, à intensificação da precarização. Não há alternativa para a precarização sem redistribuição radical dos recursos materiais disponíveis socialmente.
“A ocupação das escolas é uma tomada de assalto transversal da política por parte dos estudantes.”
IHU On-Line – Como você analisa as ocupações nas escolas? Será possível esperar modificações políticas desse tipo de manifestação?
Alex Martins Moraes – A ocupação das escolas é uma tomada de assalto transversal da política por parte dos estudantes. Eles conseguiram desenvolver a organização e a confluência necessárias para se constituir enquanto sujeitos políticos tanto nos grandes debates, que dizem respeito ao orçamento público e às mudanças legislativas, como nos debates mais localizados, que se referem à democracia institucional, à relação com diretores e conselhos escolares. Negando as lógicas tutelares, os secundaristas decidiram cuidar diretamente dos seus próprios assuntos. Roubaram transitoriamente o espaço escolar do arbítrio burocrático e conjugaram, através da ocupação, os fins e os meios da luta política.
No entanto, se quisermos ser fiéis aos secundaristas, não podemos depositar neles todas nossas esperanças de rebelião. Devemos nos rebelar com eles, seguir seus passos em nossos respectivos lugares de trabalho e estudo, perceber os limites que se impõem à realização de nossa autonomia e bem-estar e ter coragem para enfrentá-los. A ocupação das escolas ressoa em mim como uma mensagem de decisão e coragem. Não me atreveria a prever os desdobramentos das lutas protagonizadas pelos secundaristas. É evidente que existe uma tentativa de neutralizá-las, de fazê-las encaixar nos discursos mais despolitizados em defesa da educação, de reduzi-las a um descontentamento econômico dissociado do debate sobre dignidade e capacidade de autoenunciação dos estudantes. Pode ser que os secundaristas aceitem este tipo de solução política para o conflito. Mas sabemos que o mal-estar vai além disso. As coisas não voltarão a ser como antes nas escolas ocupadas.
IHU On-Line – Você acompanhou junho de 2013? Que impactos essas manifestações tiveram na sociedade, três anos depois?
Alex Martins Moraes – Acompanhei o “pré-junho” porto-alegrense, as sublevações que tiveram como momentos emblemáticos a derrubada do mascote da Coca-Cola no centro da cidade e a exitosa luta contra o aumento da passagem de ônibus nos meses subsequentes. Em junho eu estava na Argentina, mas mantive intenso contato com amigos, colegas e companheiros que participavam das manifestações. Cheguei a escrever algumas intervenções sobre as experiências sublevatórias em Porto Alegre. As forças sociais que decidiram explorar as consequências mais radicais abertas pela conjuntura de junho foram justamente aquelas cujo projeto de emancipação, as demandas por reconhecimento e a própria experiência de sociedade couberam cada vez menos no horizonte pragmático de uma esquerda institucionalizada. Esta miríade de movimentos – que inclui agrupações de juventude, tendências socialistas dos partidos no governo, agremiações anarquistas, comitês populares da Copa do Mundo, organizações de comunidades tradicionais, movimentos pela igualdade de gênero, alguns sindicatos, novos movimentos populares urbanos etc. – negou o discurso tutelar da política oficial para exercer uma resoluta disposição em cuidar dos próprios assuntos.
As práticas sublevatórias de 2013 redefiniram os horizontes da democracia brasileira neste momento de esgotamento do consenso progressista. Se por um lado abriram-se linhas de fuga com enorme potencial transformador, por outro lado velhos dispositivos de controle institucional foram sofisticados e novos elementos jurídicos – como a lei antiterrorismo – passaram a regular as dinâmicas da vida coletiva. Neste momento, estamos defrontados com uma disjuntiva entre a experimentação política no terreno da incerteza e a democracia controlada no terreno da segurança.
“Segurança”, aqui, não deve ser entendida como o oposto de incerteza, mas sim como a pretensão de neutralizar tudo aquilo que, no marco de uma dada estratégia de poder, é representado como incerto e, portanto, perigoso. As marchas verde-amarelas dos últimos tempos fortalecem o clamor por segurança, estabilização forçada (não fale em crise, trabalhe!), democracia limitada, manutenção de privilégios e sutura da experimentação política. Ainda existe, no entanto, uma fissura entre os dispositivos de poder vigentes e a energia coletiva liberada em 2013, de modo que continuam abertas diversas perspectivas de inovação militante em condições de conferir às expressões políticas da dissidência algum poder efetivo nas relações de força concretas.
IHU On-Line – Em que consistiu sua pesquisa “Negociando às/as margens: experiências de trabalho, deslocamento, indocumentação e acesso aos serviços do Estado na fronteira brasileiro-uruguaia”? O que constatou sobre a dita integração do Mercosul?
Alex Martins Moraes – Esta pesquisa deu origem a minha dissertação de mestrado, defendida na UFRGS há alguns anos. Através do diálogo com trabalhadores brasileiros e uruguaios que se deslocam através das fronteiras nacionais, eu procurei mapear a singularidade da sua experiência de classe. Um dos resultados da investigação, que poderia ser relevante para as questões que viemos abordando aqui, foi a identificação de um regime relativamente novo de produção da alteridade migrante. Dito regime parece se relacionar com processos recentes de ampliação dos mercados laborais e dos serviços públicos do Estado tanto no Brasil como no Uruguai. Explico. Durante todo o século XIX e boa parte do século XX o deslocamento de trabalhadores na fronteira brasileiro-uruguaia foi relativamente fluido e o fator nacionalidade não parecia ser determinante na configuração da experiência migratória desses sujeitos. Com a promoção de novos direitos sociais e a extensão de serviços públicos essenciais às zonas de fronteira, principalmente depois da redemocratização do Brasil e do Uruguai, nos anos oitenta, as coisas mudaram.
No caso uruguaio, o incremento do controle sobre a legislação laboral foi favorecido pelo retorno da democracia e potencializado, nos últimos dez anos, pela sucessão ininterrupta de três governos da Frente Ampla. Estes governos aprofundaram a regularização do trabalho rural e concederam maiores garantias de sindicalização aos trabalhadores do campo. Para se proteger da fiscalização, vários produtores rurais começaram a condicionar a contratação de brasileiros à apresentação de documentos que comprovassem situação migratória regular. O mercado de trabalho dos indocumentados reduziu-se. Exclusões semelhantes, baseadas em critérios de nacionalidade, também ocorrem na distribuição de benefícios sociais – Bolsa Família, por exemplo. Pais uruguaios com filhos brasileiros – situação comum na fronteira – não podem acessar os planos sociais do governo se estiverem indocumentados. A estrangeirização dos pais uruguaios estrangeiriza, por tabela, seus filhos brasileiros. Isso para não falar dos percalços no sistema de saúde, um ponto muito sensível quando se trata de pessoas que dependem do vigor físico dos seus corpos para subsistir. Enfim, os trabalhadores transfronteiriços devem enfrentar um tipo de clivagem nacional que não operava sobre eles em décadas passadas. É interessante notar que, nestes casos, a exclusão do mercado é reforçada pela exclusão do Estado e vice-versa.
Atualmente, estou menos interessado nos efeitos colaterais excludentes da ampliação dos direitos e mais interessado na forma como os governos progressistas incluem as demandas e a capacidade de organização dos trabalhadores em seu próprio horizonte estratégico. Continuo desenvolvendo trabalho de campo no Uruguai, agora junto a Unión de Trabajadores Azucareros de Artigas – UTAA, o sindicato dos cortadores de cana da cidade de Bella Unión. A pesquisa militante que Juliana Mesomo e eu realizamos no ano de 2015, em parceria com a UTAA, nos permitiu fazer algumas constatações interessantes. Por exemplo: os investimentos do governo uruguaio na ampliação da agroindústria canavieira daquela região do país procuraram se beneficiar das habilidades laborais e da vontade de acessar terras nutridas há vários anos pelos cortadores de cana organizados no sindicato. Foram criadas novas colônias agrícolas formadas por ex-trabalhadores rurais. Estas colônias estão agora endividadas com o engenho açucareiro local, o que impede que seus membros diversifiquem a produção, ficando atados ao monocultivo da cana.
Por outro lado, o sindicato continua reivindicando mais terras para os trabalhadores, mesmo que a área de cultivo da cana-de-açúcar já não possa ser ampliada em razão do esgotamento da capacidade de processamento do engenho. Os mesmos desejos que outrora o governo mobilizou em seu favor começaram a sair do controle.
O sociólogo Pieter de Vries sugere que o desenvolvimento é uma espécie de máquina que fomenta desejos ao mesmo tempo que os aniquila. Eu diria que os desejos saem em busca de novos objetos e territórios, continuam se desdobrando mais além das soluções negociadas com o governo. Eles inauguram horizontes inesperados de imaginação política que permitem, por exemplo, que a Unión de Trabajadores Azucareros de Artigas comece a falar de uma reforma agrária real ancorada em generosos benefícios governamentais.
“A inclusão via consumo, por sua vez, trouxe a reboque a financeirização das economias populares e o consequente endividamento generalizado”
IHU On-Line – Quais são as principais tensões que evidencia entre os governos progressistas na América Latina e os movimentos sociais ou a população de modo geral? Desde a sua experiência na Argentina, o que tem percebido neste país em particular?
Alex Martins Moraes – Como comentava, parece-me produtivo pensar que o êxito dos chamados governos progressistas deveu-se, em alguma medida, à sua capacidade de acompanhar e canalizar a produção desejante no campo social. Pelo menos até meados dos anos noventa, o Partido dos Trabalhadores operou como um verdadeiro analisador social, na medida em que, através de suas conexões com o ativismo comunitário, os movimentos negros e, claro, o movimento sindical, o partido conseguiu construir um programa político sensível às demandas encarnadas das pessoas.
O lulismo, por sua vez, deslocou o horizonte reformista e redistributivista radical do primeiro petismo em favor de intervenções políticas orientadas a melhorar as condições de inserção das classes populares numa estrutura institucional e num sistema de mercado cujos fundamentos não foram tocados. Henrique Costa aborda essas questões em sua dissertação de mestrado, baseada num estudo de caso com os prounistas de São Paulo.
A perda da conexão entre política estatal e radicalização da produção desejante reintroduziu a política institucional no círculo vicioso de uma vida sem futuro, na qual “amanhã” é sinônimo de “hoje”. O estado de decepção gerado pelo empobrecimento do horizonte político da esquerda governista favorece a emergência de propostas conservadoras que nos dizem o seguinte: muito bem, chegamos até aqui, agora é hora de deixar de lado a parafernália ideológica e os ex abrupto socializantes para pensar seriamente em como preservar o patrimônio conquistado e sustentar o desenvolvimento capitalista no longo prazo. Em duas palavras: segurança e normalização.
Na Argentina ocorreram processos similares. Numa publicação recente, assinada por diversos autores e destinada a fazer o balanço das condições de possibilidade do macrismo, chega-se a conclusão de que, na política do kirchnerismo, a vontade de inclusão coexistiu, o tempo todo, com a vontade de normalização. As exigências de mudança, a pragmática coletiva e as necessidades enunciadas pelos movimentos sociais na crise de 2001 foram enquadradas ou subestimadas pelos governos da Frente para la Victoria. Isto não quer dizer que tenham sido apagadas, mas sua existência política foi posta em detrimento dos grandes debates centrados na capacidade do Estado de coordenar, através de lógicas já conhecidas, a saída da crise.
A inclusão via consumo, por sua vez, trouxe a reboque a financeirização das economias populares e o consequente endividamento generalizado, que amplificou os efeitos da “precariedade totalitária”, para usar um termo cunhado pelo coletivo de pesquisadores Juguetes Perdidos. Este não parece ser o melhor cenário para a experimentação política. A vida já está muito saturada de riscos. Nesta conjuntura, Verónica Gago, do Colectivo Situaciones, sugere que a pesquisa militante possibilitaria detectar as tensões entre a normalização da existência e outras forças que colocam em xeque a lógica neoliberal como sentido total e que sinalizam suas expressões intoleráveis no cotidiano.
Movido por intuições semelhantes, o Instituto de Experimentação e Pesquisa Social Outras Margens, do qual faço parte, organizará um encontro com pesquisadores que atuam dentro e fora da universidade para compartilhar metodologias e experiências de pesquisa militante. Se tu me permites, gostaria de aproveitar este espaço para estender o convite a todos os interessados. O evento se chama “Às Armas: aportes metodológicos para a pesquisa militante” e ocorrerá no SindBancários nos dias 22, 23 e 24 de julho. Poderia ser uma oportunidade para continuar aprofundando as questões que vim discutindo até aqui.
Fonte: Adital