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Desde 2013, as escolas paulistas sofrem com a crise de abastecimento de água, reconhecida recentemente pelo governo do estado. Para pais, professores e diretores, a falta de orientação aos gestores escolares agrava o prejuízo dos alunos. Leia a primeira reportagem das microbolsas sobre Crianças e Água promovidas pelo Instituto Alana em parceria com a Agência Pública

Na saída da turma da manhã da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Enéas Carvalho de Aguiar, na Vila Sabrina, zona norte de São Paulo, mães e avós esperavam seus filhos e netos. Era final de junho, última semana antes das férias, e elas tinham uma reclamação na ponta da língua: a falta de água constante na escola. Márcia Brito, mãe de uma aluna do 3⁰ ano e avó de um aluno do 5⁰, era das mais indignadas. “Tem dias que eles são dispensados. A gente mal é avisado se vai ter reposição depois ou se ficarão com falta.  Os dois reclamam do fedor no banheiro e contam que às vezes a professora pede para segurar o xixi. Não é um absurdo?” Talita Carrara, aluna no 9⁰ ano do Ensino Fundamental 2, que funciona à tarde, se queixa da mesma situação: “Tem dias que não temos aula porque ninguém consegue ficar aqui, o cheiro é muito forte”.

A escola adotou medidas emergenciais, como pedir que os alunos tragam garrafinhas de água potável e servir a merenda seca, ou seja, composta de alimentos que não precisam ser cozidos, como biscoitos ou bolos prontos. Inadequada à saúde e ao desenvolvimento das crianças conforme explica a nutricionista Lígia Henriques: “Há risco de constipação intestinal e obesidade e desnutrição, pois são alimentos pobres nos nutrientes necessários na infância”.

O caso da Vila Sabrina não chega a ser exceção na periferia da cidade de São Paulo, apesar da insistência do governo em negar a crise de abastecimento, que se arrasta desde 2013, e apenas neste mês de agosto foi reconhecida em portaria pelo governo do estado. Não há previsão de melhora: o arrefecimento causado pelas chuvas de verão não recuperou o nível das represas, embora tenha ajudado a afastar o assunto do noticiário e das comunicações oficiais da Sabesp.

O fato é que nem todos sentem a crise da mesma forma, como disse Maria Izabel Noronha, presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) diante das sucessivas negativas oficiais da existência de problemas de abastecimento de água na escola: “Nunca vi uma gestão tão mentirosa como essa. Aqui no centro pode estar tudo bem, mas as periferias vivem racionamento e as escolas de lá estão sofrendo com isso”.

Durante a última greve dos professores no estado, encerrada em 15 de junho último, a Apeoesp fez uma campanha chamada “Sem água, São Paulo para” e recolheu denúncias de educadores sobre a falta de água em seus locais de trabalho. Algumas delas seguem abaixo (a identidade dos professores foram preservadas).

O poder público tem como obrigação legal garantir o abastecimento das escolas e impedir qualquer prejuízo aos alunos, como a perda de aulas, além de afirmar a prioridade do direito das crianças estabelecida pela Constituição. Foi com base nessa legislação, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Resolução 64/292 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas que o Instituto Alana entrou com uma representação no Ministério Público Estadual que deu origem a um inquérito civil convocando Sabesp, prefeituras e governo do estado a comunicar o que estão fazendo para garantir a prioridade prevista em lei. A parcela infantil da população deve ser a primeira a ter acesso aos locais com oferta de água em caso de crise de abastecimento, “garantindo-se o mesmo tratamento prioritário aos espaços a elas destinado, como escolas, creches, berçários, maternidades, hospitais infantis, postos de saúde e todos os serviços de acolhimento e atendimento”, descreve o inquérito. O Ministério Público juntou ao documento gerado pela iniciativa do Instituto Alana o ofício encaminhado pelo Núcleo de Políticas Públicas do MP noticiando o risco de colapso do Sistema Cantareira e de outros sistemas da região metropolitana. O promotor responsável aguarda a resposta dos órgãos governamentais convocados. Além da prestação de contas sobre a escassez nas escolas, outros 49 inquéritos e ações civis públicas sobre a crise hídrica e suas consequências estão nas mãos dos promotores do Ministério. Em audiência pública marcada para este mês, o órgão pretende ouvir a população que está lidando com a falta de água.

O poder público tem como obrigação legal garantir o abastecimento das escolas e impedir qualquer prejuízo aos alunos, como a perda de aulas, além de afirmar a prioridade do direito das crianças estabelecida pela Constituição. Foi com base nessa legislação, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Resolução 64/292 da Assembleia Geral da Organização

No dia 20 de agosto, o Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo (Daee) publicou noDiário Oficial da União uma portaria reconhecendo a “criticidade” da situação do Sistema Produtor Alto Tietê – que abastece  a zona leste de São Paulo, além de Poá, Itaquaquecetuba, Ferraz de Vasconcelos, Arujá, Suzano, Mogi das Cruzes, Mauá e parte de Guarulhos. A atitude do governo estadual não é uma resposta direta ao inquérito aberto por iniciativa do Instituto Alana, mas abre precedente jurídico para decretar rodízio.

Dispensa de alunos

A reportagem presenciou a dispensa de alunos na Emef Enéas Carvalho de Aguiar por falta de água, embora não tenha obtido permissão da Secretaria Municipal de Educação para entrar na escola. A secretaria alegou que não queria associar as escolas “à pauta da crise” e não permitiu que a diretora desse entrevistas. Mas, enquanto a pequena Tiemi Fujita, aluna do 2⁰ ano, se queixava para a mãe, Adriana, da impossibilidade de dar descarga na escola, uma funcionária no portão liberava as crianças para ir embora para casa.

Entrada da EMEF Enéas Carvalho de Aguiar, zona norte da capital. Por causa da falta de água há dias em que as crianças são dispensadas. Foto: Felipe Paiva

Sem se identificar, a funcionária alegou que a direção fazia o possível para contornar a falta de água, mas a caixa com 10 mil litros de capacidade se esvazia rápido com as atividades realizadas pelos 1.053 alunos da unidade. Quando há água da rua, os funcionários enchem alguns baldes e reservam para a limpeza, conta. As faxineiras usam essa água com desinfetante para limpar o chão e despejar nas privadas na hora da entrada, nos intervalos e na hora da saída. Segundo a funcionária, até o fim de maio a prefeitura mandava um caminhão-pipa quando a escola pedia. Mas depois disso as solicitações não foram mais atendidas.

Em 11 de junho deste ano, uma postagem na página da instituição no Facebook pedia a colaboração dos pais, mas afirmava que os alunos não seriam dispensados:

 

Mensagem de junho no Facebook da EMEF Enéas de Carvalho Aguiar afirma que não há água na escola. Reprodução.

A Secretaria Municipal de Educação, via assessoria de imprensa, negou que a Emef Enéas Carvalho de Aguiar ou qualquer outra escola da rede tenha interrompido seu funcionamento regular por causa do desabastecimento. Segundo o órgão, a caixa de todos os prédios suporta fornecer a água nos dias de falta e o caminhão-pipa é enviado sempre que solicitado. Por sua vez, a Secretaria Estadual de Educação também negou a dispensa dos estudantes e afirmou que não falta água nas escolas estaduais. Assim como na administração municipal, foi aberto um canal com as escolas para solicitar caminhões-pipa.

Enquanto isso, na Vila Londrina…

Na E.E. Professor Caetano Miele, na Vila Londrina, zona leste da capital, os alunos também ficaram no prejuízo. Cláudia Negruts conta que sua sobrinha, que estuda das 7h às 12h20, era dispensada antes das 10h30 pelo menos uma vez por semana durante os meses de março e abril por falta de água. As aulas perdidas não foram repostas até o fim do semestre e não há notícia de que serão. O diretor da unidade, Mário Augusto Alexandre, explicou que nos períodos mais duros da seca, no meio do ano passado, o sistema hidráulico do prédio não suportou a diferença de pressão: “Eu tenho um encanamento de 1954. Ele estourou e eu tive que rebolar para fazer a escola funcionar”, diz. Todos os dias a água acabava às 9h e o consumo foi racionado. “A gente sabe que dá para ficar até três horas sem ir ao banheiro. Então orientamos os alunos a segurar, não usar o tempo todo. A descarga era acionada a cada duas horas se alguém fizesse cocô, se não deixávamos mais tempo”, conta o gestor.

A 15 quilômetros dali, Viviane* (nome fictício) dá aulas de História na E.E. Dona Genoefa d’Aquino Pacitti, no Jardim Palmira, entre Guarulhos e São Paulo. Desde o começo do ano, as torneiras secam dia sim e dia não. A bomba não consegue fazer a água subir até o primeiro andar, onde ficam as classes do Ensino Fundamental 1, a sala de leitura, a de Arte e a dos professores. Em março, um dos docentes construiu uma cisterna improvisada para captar a água da chuva que fica na calha. Ela está no meio do corredor, onde há trânsito de alunos. A educadora conta que os professores estão sem banheiro e os usados pelos estudantes, não raro, ficam sem descarga. Apesar do revezamento das funcionárias da limpeza, é impossível evitar o odor desagradável. A orientação da direção é evitar que as crianças usem muito o sanitário para não acumular sujeira. “É pior para os mais novos, que pedem mais para usar o banheiro. Em geral, eu libero a ida porque não acho certo segurar o xixi”, diz a docente.

Situação parecida acontece no Parque São Lucas, no sudeste da cidade, na casa amarela que abriga o Centro de Educação Infantil Reino da Criança I. Lá, a água chega diariamente às 6h e tem dias que às 9h já acabou. Cláudia de Souza, funcionária da unidade, conta que o banho para os bebês de 0 a 3 anos foi suspenso. Agora, a higiene das crianças é feita com lenço umedecido e álcool-gel. No ano passado as turmas ficavam em casa quando não havia água na escola. Mas a secretaria visitou a escola, proibiu a dispensa de alunos e orientou a chamar um caminhão-pipa quando necessário. O problema é que a creche é conveniada à prefeitura, portanto paga do próprio orçamento pelo caminhão. “Estamos tirando dinheiro dos recursos pedagógicos para arcar com a compra dos lenços umedecidos, baldes extras e álcool. Mas não temos dinheiro para chamar o caminhão sempre que precisar. Isso é impossível”, reclama Cláudia.

Na EMEF Enéas Carvalho de Aguiar, a orientação aos pais é que seus filhos tragam garrafinhas de água. Foto: Felipe Paiva

O triste cenário de escassez de água e precariedade de recursos para resolver o problema se repete em escolas de outras regiões da capital e de vários municípios paulistas. Camila Pavanelli di Lorenzi, autora do tumblr Boletim da Falta d’Água, mapeou tudo o que se publicava sobre o tema de outubro de 2014 a junho de 2015. O resultado de sua pesquisa é alarmante. “Aprendi que as escolas não são prioridade. Elas pagam caro pela água e são desprezadas. Muitas solicitaram caminhão pipa e nem sequer foram atendidas. Vivemos um fracasso civilizacional, de repente uma escola sem água virou algo corriqueiro”, diz Camila. Pelo compilado feito por ela, ao menos oito municípios além da capital liberaram seus alunos por causa das torneiras secas: Guarulhos, Itu, Cristais Paulista, Mauá, Poá, Carapicuíba, Campinas e Cajuru. Na cidade de São Paulo, mais de 45 escolas se queixaram publicamente do problema. Todas distantes da região central. Embora hoje dê o assunto como encerrado, em outubro do ano passado a própria prefeitura divulgou uma lista de unidades com falta de água:

Santo Amaro: CEI Domingos Rufino de Souza, CEI Dep. José Salvador Julianelli, CEI Profa. Maria do Carmo Pazos Fernandez – Madu, CEI Onadyr Marcondes, CEI Vila Império, Emei Almirante Tamandaré, Emei Geloira de Campos, Emei Dorina Nowill, Emef Almirante Ary Parreiras, Cieja – Centro Int. de Jovens e Adultos e Emef Prof. Linneu Prestes;

São Miguel: CEI Anton Makarenko: a falta d’água comprometeu a realização da reunião pedagógica, os professores compraram galões menores de água; Emei Prof. Edi Greenfield: era dia de escola na família, mas não houve compra de carro-pipa; CEI Conv. Jardim das Camélias: usaram reservatório;

Pirituba: CEI Profª Maria José de Vasconcelos Mankel;

Jaçanã/Tremembé: CEI Vila Medeiros, CEI Espaço Criança, Emei Otília de Jesus Pires; Emef Rodrigues Alves; Emei Profa. Vera Arnoni Scalquetti, Emei Padre Anchieta, CEI Vovó Marlene e Emef Nilce Cruz Figueiredo;

Butantã: Emei Carolina Maria de Jesus, Emei Emir Macedo Nogueira, Emef Des. Arthur Whitaker e Emef José de Alcântara Machado Filho;

Penha: Emei Almirante Tamandaré;

Ipiranga: CEI Inez Menezes Maria e CEI Monumento.

Consequências da precariedade e outras possibilidades

Não houve nenhum tipo de preparo dos órgãos públicos para que os diretores pudessem enfrentar os problemas trazidos pela falta de água. Aliás, nem sequer a falta de água e as medidas que deveriam ser adotadas pelos gestores foram discutidas nas escolas. “A escola é uma instituição pública, que recebe muitas pessoas. Lá a lógica doméstica do balde pode não funcionar”, critica Maura Barbosa, coordenadora pedagógica de gestão escolar da Comunidade Educativa Cedac.

Por vezes, as ordens se atropelaram. No início do ano, a prefeitura solicitou às escolas da rede uma economia de água de 20%. Para alcançar a meta, unidades da zona norte cortaram a hora de escovar os dentes da rotina dos alunos, como revelou uma reportagem da Folha de S.Paulo. No mesmo dia, o prefeito declarou em um evento que a atitude era descabida.

A situação é ainda mais difícil no caso das creches, que já sofrem com o despreparo de seus funcionários para atender aos protocolos de saúde pública, como explica a doutora em ciências da saúde e mestre em enfermagem pediátrica Damaris Gomes Maranhão. Para ela, os cursos de pedagogia não abordam essas práticas e os cuidados com a higiene e saúde dos bebês e crianças são considerados uma atividade escolar menor. “É um trabalho de formiguinha construir a importância dos cuidados nas escolas. Com a falta de água, as desculpas para ignorá-los aumentam.”

Damaris critica o uso do álcool-gel na Educação Infantil, diz que o produto comprado na farmácia é inadequado para a pele da criança, que, além disso, coloca as mãozinhas no olho e na boca o tempo todo. Pedir para segurar o xixi é grave, pois pode gerar dores pélvicas e até infecção urinária. E lavar menos as mãos ou deixar de fazê-lo aumenta o risco de contaminação: “Se houver um menino ou menina com diarreia, a chance de contágio geral é grande”. O ideal, para a especialista, seria a adoção de um sistema mais organizado, dando prioridade aos banheiros dos alunos em caso de escassez de água. “Em geral, o banheiro da diretora é prioridade nas escolas. Esse nunca está sujo. Mas o mais importante são os alunos”, argumenta.

Priscila Monteiro, consultora pedagógica da Fundação Victor Civita, observa que o prejuízo vai além do incômodo provocado pela sujeira. “A escola é o primeiro espaço social que a criança frequenta. Se ninguém garante sua limpeza, a mensagem transmitida é que não precisa jogar o lixo no lixo nem cuidar do que é público.” Priscila atribui ao governo e à Sabesp a culpa pelas iniciativas equivocadas dos gestores: “O diretor manda a criança voltar para casa porque é a medida que ele conhece. Todos  estariam mais preparados para lidar com a falta de água se desde o começo o poder público tivesse falado abertamente sobre o assunto”.

Mais uma lição

A crise revela também a incapacidade das escolas para preparar os alunos para o uso racional da água, o que teria impactos importantes na rotina das famílias, como explica Luciana Hubner, diretora de relacionamento e implementação da Abramundo Educacional. Segundo ela, a abordagem sobre a economia da água quase sempre é feita sob a forma de campanhas pontuais, que não alteram a rotina e as práticas da própria escola, levando a crer que gastar menos água não é algo desejável o ano todo, mas só durante a campanha.

A longo prazo, porém, o mais grave talvez seja a falta de investimento na estrutura das escolas para a economia permanente de água. Em 2003, quando Flávio Augusto Scherer finalizou sua dissertação de mestrado – Uso Racional da Água em Escolas Públicas: Diretrizes para Secretarias de Educação – na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, já se previa a escassez de água em São Paulo. De acordo com ele, o ideal seria incluir mudanças nos sistemas hidráulicos nos programas de uso racional da água, coisa que a grande maioria das cidades e dos estados não faz. Em São Paulo, a secretaria estadual acordou com a Sabesp a adesão de 600 escolas ao Pura (Programa Racional de Uso de Água) para reparos e construção de cisternas em algumas unidades, mas ainda é pouco diante das 5.300 escolas da rede.

Flávio costuma ouvir as mesmas objeções quando apresenta às prefeituras a proposta desenvolvida no mestrado. “Eles se preocupam com quanto vai custar e se vai ficar pronto na sua gestão; se não gerar dividendos políticos, acham que não vale a pena.” Para o engenheiro, as ações de prevenção têm de ser vistas como contribuição de longo prazo para o meio ambiente, para as contas públicas e também para uma sociedade mais saudável e preparada para lidar com escassez de recursos. Segundo dados da própria Sabesp, hoje estamos numa situação pior do que há um ano. A primeira semana de agosto já teve menos chuvas do que no mesmo período de 2014, o ano mais seco vivido pelo estado. Não há mudanças de atitude do poder público no horizonte.

Fonte: Agência Pública 

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