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Cartografia Social  tem ponto de apoio nas violações e observa poder estadual como agressor
“Quando o policial vê um jovem na Maré vem logo esculachando, é preconceito puro só porque moramos na favela”. Relatos fortes e impregnados por um sentimento de violação social, na verdade quase um desabafo, são os elementos de composição da “Cartografia Social” do Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, que se encontra em fase de construção na comunidade. O estudo participativo teve início há alguns meses pela ONG FASE, que pretende transformar jovens em protagonistas na formatação de um mapa atualizando da região, a partir dos seus olhares, vivências e percepções. O ponto de apoio são as violações à juventude na comunidade, tendo como “agressor” o poder governamental através de políticas “exclusivas e ditas de pacificação”.

O projeto social na Maré tem a consultoria do historiador Fransérgio Goulart de Oliveira Silva, de 42 anos, que acumula experiência nas áreas de Juventude, Desenvolvimento Comunitário e Direitos Humanos em Organizações não Governamentais. Fransérgio define a cartografia social como uma metodologia que não impõem peças para a construção do mapeamento, tendo como resultado final o aglomerado das percepções dos jovens participantes, com relação ao diversos setores sociais considerados por eles relevantes para a melhoria da vida na comunidade.

Fransérgio Goulart
Fransérgio Goulart

“No processo da Cartografia Social não podemos chegar [agentes sociais] pautando os elementos e fatos. O que tivemos para deflagrar a construção com os jovens foram o conceito de Direito à Cidade e à Justiça Ambiental”, explicou o historiador sobre como aconteceu a implantação do projeto na comunidade carioca. “Tanto que vários aspectos não apareceram, pois quem demarcava e dizia o que apareceria eram os jovens a partir da sua vivência”, completou. Os participantes, jovens entre 14 e 29 anos, receberam instruções técnicas de como montar o mapa através de oficinas monitoradas por Fransérgio, que também organizou visitações às 16 favelas que formam o complexo.

“As oficinas só ratificaram e reforçaram o que já sabiam [os jovens] a partir das vivências nos territórios onde vivem”, avaliou o historiador. A conclusão de Fransérgio reforça o conceito “Cartografia da Ação Social”, metodologia criada pela socióloga Ana Clara Torres Ribeiro, que desenvolveu a prática ao longo de 16 anos, com base no Banco de dados Processos Sociais, que permitiu a autora fundir as áreas da Sociologia com a Geografia. Atualmente, o termo vem sendo usado amplamente por sociólogos e economistas para difundir mapas interativos em comunidades do Rio.

Dados da Cartografia Social da Maré
Dados da Cartografia Social da Maré

“Ana Clara entrou o século XXI imprimindo a importância dessa metodologia, que coloca no centro dos estudos os moradores em áreas de risco social, visando ainda a manutenção da memória técnica e afetiva desses lugares. Os atores sociais, a partir desse instrumento de pesquisa, podem construir a identidade do local através dos seus olhares e percepções, juntamente com os seus pares”, esclareceu Humberto Kzure-Cerqueira, arquiteto e urbanista do Instituto de Tecnologia da UFRRJ, mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e doutor em Urbanismo pelo PROURB/FAU/UFRJ e Bauhaus Universität Weimar da Alemanha.

Ao escolher jovens para a criação do mapa, Fransérgio pretende desmistificar a ideia de que esse público não tem qualificação para avaliar o que é melhor para o seu futuro e tambem que pode servir como massa de manobra. “As juventudes quase sempre colocadas pela grande mídia e pelo discurso da maioria da sociedade como alienada, vem nesse processo da cartografia romper com esse discurso mostrando que estão totalmente inseridos no debate das condições urbanas no território da Maré e do restante da cidade, e assim esses participantes relataram e cartografaram essas violações que decidimos organizá-las a partir de como elas foram conceituadas pelos próprios participantes: segurança pública, moradia, esgoto, racismo, intolerância religiosa, Coleta de lixo, direito à cidade, Cultura e Resistência, mobilidade e acessibilidade”, enfatizou o historiador.

Dados da Cartografia Social da Maré
Dados da Cartografia Social da Maré

Kzure-Cerqueira chama a atenção para a relação entre o momento eleitoral e o lançamento de pesquisas, que podem servir como “termômetro” para os partidos. “A população jovem pode ser captada a partir da divulgação de estudos sobre o seu perfil. com certeza. Os partidos que estão na corrida eleitoral pode tentar manipular fazendo uso dos dados divulgados, mas isso não quer dizer que o jovem vai entrar no jogo partidário. Até porque a juventude hoje está mais interessada na inserção profissional, do que no comprometimento de como o país está conduzindo a política de Estado”, analisou.

Na visão do sociólogo, há na atual conjuntura social uma “espécie de conservadorismo e alienação” dos jovens como herança de seus antepassados. O que pode ser fruto da falta de investimento na educação e cultura no Estado, acarretando num avanço mínimo, pela própria estratégia do poder regional. “Isso explica o termo ‘coxinha’ [expressão pejorativa usada na gíria para descrever uma pessoa considerada socialmente correta]. É o jovem reacionário, representando a política arcaica”, comparou Kzure-Cerqueira. Esse jovem que mantém os seus ideais no conservadorismo, na análise do sociólogo, representa um “perigo” para os avanços sociais, porque ele está integrado nas novas mídias sociais e pode exercer o seu domínio através das redes, direcionando a conduta da sua classe no país. “Não é à toa que os partidos estão de olho neles. As manifestações [de julho de 2013] pode ser sim um exemplo desse processo. A classe política sabe disso”, comentou Kzure-Cerqueira.

A Cartografia Social da Maré ainda não tem uma data para ser lançada, mas para quem está a frente do projeto o resultado mais significante já foi alcançado. “O mais importante de uma Cartografia Social é quando ela se transforma em ferramenta de luta por quem  a criou. E isso temos certeza que os jovens se empoderaram desse processo”, destacou Fransérgio. O historiador acredita que, com as campanhas eleitorais no Rio, será possível os jovens da comunidade apresentar as suas demandas aos candidatos ao governo estadual. “Eles terão a oportunidade de apontar as violações que vêm sofrendo, cotidianamente, pelo poder estadual, a partir deles mesmos, e não de dados e de cartografias que muitas das vezes não espelham a realidade vivida”, enfatizou.

Na expectativa de Fransérgio quanto o efeito do estudo na sociedade carioca, é que as pessoas que entrarem em contato com a cartografia possa perceber a juventude não como problema – “mas como sujeitos construtores de direitos e que exigem e sabem do que a favela precisa”. “A gestão pública precisa entender de uma vez por todas, que política pública se faz com essa participação direta, e não apenas pela forma representativa, através do voto, via institucional esta ,que inclusive está muito desacreditada pelas juventudes”, destacou.

Um dos norteadores do mapeamento na Maré, o Estatuto da Juventude, na opinião de Fransérgio ainda é um marco legal pouco conhecido pelos jovens na comunidade, mas também pouco conhecido da classe em todo o país. “Precisamos dar visibilidade e comunicar esse marco para os principais envolvidos. No entanto, para ele os jovens possuem maturidade suficiente para avaliar toda a conjuntura social complexa da comunidade, e a Cartografia Social realizada por eles foi uma prova dessa qualificação. “Eles têm total maturidade ao dizer que sabem muito bem que é o Estado o maior violador de direitos na favela”, ressaltou. Fransérgio definiu os princípios desse jovem que participou do estudo. “Eles têm o respeito às diversidades, a solidariedade e a necessidade de estar em grupos sempre com a perspectiva do trabalho e convivência em rede, rede essa que se torna na maioria das vezes o apoio e suporte principal para o enfrentamento das violações”.

A assistente social Mônica de Souza Ponte, que integra o ONG FASE, responsável pela produção da Cartografia Social da Maré, contou como foi a chegada do projeto à comunidade e os próximos passar para a sua divulgação no Rio, incluindo uma estratégia de publicidade bem mais ampla. Segundo a profissional, o cartografia irá compor uma cartilha que vai apresentar os resultados de diversos projetos que estão em andamento em comunidade cariocas e em mais cinco estados nacionais, sobre os temas Justiça Ambiental e Direito à Cidadania voltados para a juventude.

“O conteúdo da cartilha é um olhar atualizado do jovem sobre o território que ele reside”, disse Mônica, prevendo um lançamento para o final deste ano. Mônica contou que desde o ano passado a Maré vem recebendo programas semelhantes, através de uma parceria que a sua ONG firmou com um grupo local, o Conexão G, formado por militantes gays moradores do complexo. A cartografia, no entanto, teve seu início este ano, com consultoria de Fransérgio Goulart.

Quatorze jovens moradores, de perfis sociais diferentes, foram selecionados para compor a equipe de produção do mapa, após uma chamada geral feita pela ONG nas favelas da região. “Escolhemos jovens engajados e aqueles que nunca participaram de projeto social, justamente para chegar à resultados diversificados”, contou. 

Aspectos sociais importantes para a juventude:

Segundo Fransérgio, as questões que mais atraíram a atenção dos jovens para compor o estudo foram Segurança Pública, Infraestrutura (saneamento, esgoto e coleta de lixo), intolerância religiosa, avaliada a partir do fechamento de espaços existentes das religiões de matrizes africanas e da não aplicação da Lei 10.639 [obrigatória na grade curricular das escolas como disciplina História Afro-brasileira], além da construção do muro que dividiu a favela da Linha Amarela, via expressa que liga os bairros da periferia ao Centro. “Para eles [jovens] esse muro representa um verdadeiro apartheid”, contou o historiador.

As avaliações do estudo foram feitas pelos próprios jovens, a partir das vivências e percepções. O setor de Segurança foi um dos mais criticados pelos participantes, que denunciaram um “processo de militarizam na comunidade”, com a chegada das tropas federais já por conta da pacificação da região, anunciada pelo governo do estado com a implantação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). “Imagina você ter sua vida vigiada pelo exército durante todo o tempo, com proibições de chegar tarde na favela onde mora e sofrer com abordagens racistas dos soldados das tropas federais”, disparou um dos jovens. Os relatos das meninas são ainda mais contundentes e revelam uma violência ao público feminino. “Só porque andamos de shortinhos curtos e saias eles [policiais] nos chamam de vagabunda”, afirma uma participante.

Fonte: Jornal do Brasil

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