Mauri Cruz*
Resistir (verbo transitivo indireto)
recusar-se, negar-se, conservar-se firme, não sucumbir, não ceder, opor-se, fazer face a um poder superior, agir na defesa ou proteção de si mesmo de alguém ou de algo, durar, conservar-se, subsistir.
A palavra de ordem do atual momento histórico é a resistência. Não que nas últimas décadas os movimentos sociais e populares tenham abdicado de resistir contra as modernas formas de opressão e dominação. Os governos progressistas no Brasil e na América Latina não promoveram as mudanças estruturais e a resistência seguir sendo nossa forma de luta. A diferença é que viveu-se um período onde a ideologia neoliberal estava submersa, escondida, não se apresentava como saída para os dilemas históricos da humanidade.
Aliás, resistência é um verbo bem brasileiro. Isto porque os povos indígenas – são tantos povos que é impossível nominá-los sem esquecer de muitos – resistem há mais de cinco séculos contra a invasão dos portugueses e espanhóis e, ainda nos dias de hoje, lutam com todas as suas forças contra o seu extermínio. Que pese haver uma legislação que define os direitos sobre suas terras ancestrais e sobre sua cultura, o estado brasileiro não age de forma a garantir estes direitos. Resta aos povos indígenas a resistência, cultural, territorial e política. E fazem isso quase sozinhos.
Da mesma forma, os povos de matriz africana, aqui no Brasil, os descendentes dos povos Ioruba, Gege e Bantu, resistem há mais de três séculos contra o sequestro e a escravidão imposta pelos portugueses, espanhóis e holandeses e pela reparação aos danos históricos que essa escravidão gerou em seu povo e seus descendentes. Esta resistência ganha profunda radicalidade e dramaticidade nos dias atuais pelo encarceramento em massa e o extermínio da juventude negra nas periferias do Brasil, ato intencional sendo perpetrado pelo estado brasileiro com a conivência e negligência do todos os segmentos políticos do país.
Da mesma forma, não há como se falar em resistência sem colocar em pauta a luta das mulheres que, da mesma forma, há séculos resistem contra a imposição da ideologia do patriarcado que tenta dominar social, econômica, cultural e fisicamente as mulheres. As mulheres, resistem contra a cultura do estupro, contra todas as formas de violência, contra os baixos salários, contra a dupla jornada de trabalho, contra o machismo que ainda hoje, justifica todas as formas de opressão e dominação. A história das mulheres é a história da resistência.
Todas estas resistências, tem uma cara jovem, se constrói a partir de uma resistência cultural, onde se afirmam velhos e novos valores, onde se desenvolve no cotidiano formas alternativas de vida, de relação entre as pessoas, de relação com a natureza e com a própria vida. Isto nos informa que a resistência não é inerte. Não é apenas uma reação a uma dominação. Ela é, em si, um processo que possibilita criar o novo, transforma a própria realidade.
Todas estas lutas de resistências, ao longo destes séculos, construíram novas formas de combater as ações de dominação, de controle, de imposição. A própria história da classe trabalhadora é representada por uma longa trajetória de luta e resistência. E destas lutas foram surgindo as propostas que representaram conquistas de direitos, como a jornada de trabalho, o direito ao descanso semanal, o direito as férias remuneradas, ao décimo terceiro salário, a licença maternidade, ao fundo de garantia por tempo de serviço, ao seguro desemprego, a previdência social, a saúde pública como direito humano, a educação universal, pública e gratuita, a assistência social e a todos os direitos humanos, econômicos, sociais e ambientais conquistados historicamente.
A luta de resistência, portanto, não foi e não é uma luta estéril, de resignação pelo que se tem ou conquistou. Ela é uma luta criativa e transformadora porque no processo de resistência se tem a possibilidade de construir o novo.
Apesar deste potencial, resistir só será uma atitude transformadora se trouxer consigo uma nova forma de agir. A essência da resistência está centrada em nosso agir. Porque a resistência é um ato concreto, físico, objetivo que provoca resultados no outro, em quem ou no que a gente se opõe. A ação mais significativa de resistência no mundo do trabalho está definida pela afirmativa: braços cruzados, máquinas paradas, ou seja, se não produzo, não serei explorado, eu impeço a possibilidade da mais-valia.
Da mesma forma, resistir é não sair do seu território, não abrir mão das sua cultura, não consumir produtos transgênicos, não usar os bens e serviços que, em sendo usados, perpetuam aquilo contra o que lutamos.
Aqui reside uma grande diferença entre resistir e discordar ou simplesmente se opor. A resistência não existe somente no universo das ideias, ela precisa existir no mundo real, no mundo das relações sociais, das relações politicas, econômicas e ambientais. Por isso, tem um potencial transformador, porque a resistência não se resume a uma opinião contrária e sim, numa postura e conduta que impõe ao outro uma situação real e concreta de resistência que o obriga a agir.
Por isso, o momento que estamos vivendo no Brasil, na América Latina e no Mundo é, ao mesmo tempo, desafiador e promissor. Desafiador porque o pensamento neoliberal está na ofensiva e com um projeto de dominação que tem capacidade real de se impor sobre toda a humanidade. Promissor porque, esta ofensiva nos obriga a construir novas convergências para resistir e, estas convergências podem apontar novas alternativas de superação do capitalismo. A novidade é a necessidade de resistirmos juntas e juntos. É a combinação da resistência dos povos indígenas, das juventudes, dos povos de matriz africana, das mulheres, dos camponeses e camponesas, das lutas urbanas, das resistência culturais. Esta é a oportunidade deste momento histórico.
Em janeiro deste ano, realizamos em Porto Alegre o Fórum Social das Resistências que se tornou um importante espaço de troca de informações, discussões, socialização de acúmulos e, principalmente, de construção coletiva de alternativas de resistência democrática. O que iniciamos em Porto Alegre desencadeou um processo de discussão nacional que culminou na proposta de realização de um Fórum Social Mundial de 13 a 17 de março de 2018, em Salvador, com o objetivo de articular os povos, movimentos e territórios em resistência, tanto do Brasil, da América Latina e do Mundo.
O desafio é grande, porque a proposta não é reunir somente para discutir propostas e sim, articular os fazeres dos movimentos sociais que realmente representam uma postura de resistência ao sistema capitalista. Por isso, o protagonismo deverá ser dos povos indígenas, dos povos de matriz africana, das mulheres, das juventudes, das lutas urbanas, das lutas dos territórios dos camponeses e camponesas, das cooperativas, dos ambientalistas, das redes de agroecologia, da economia solidária, dos pontos de cultura, do movimento hip-hop, da redes de comunicação alternativa, das lutas das lésbicas, dos gays, dos bissexuais, das travestis das/dos transgêneros e de todas e todos que fazem, no seu dia-a-dia um outro mundo possível.
Como sempre, um Fórum Social é uma oportunidade. Ele não está dado, definido, planejado, resolvido. É um evento autogestionado que será resultado da adesão voluntária e militante de quem enxerga nele uma possibilidade de acumulo de forças para criar e transformar nossa realidade. E neste FSM a palavra de ordem é resistir, porque resistir também é criar, é transformar.
*Mauri Cruz é advogado socioambiental, especialista em direitos humanos, professor de pós graduação em direito à cidade, mobilidade urbana e parceria entre estado e OSCs, membro da diretoria executiva da Abong, colunista do Jornal Sul21.
Fonte: Sul 21